Entre a independência e 1850, falar em relações internacionais do Império significa, em larga medida, falar de suas relações com a primeira potência do mundo capitalista, a Inglaterra, significa falar da coerção sistemática exercida pelos britânicos no sentido da extinção do tráfico internacional de escravos e, mais tarde, da pressão pela própria extinção da escravidão. Tais ações inglesas chegaram mesmo até à vistoria e apreensão
de navios em águas territoriais brasileiras. As relações entre o Império escravista subordinado e o Império capitalista dominante estabeleciam-se em terreno dominado por uma questão crucial para o primeiro e inerentemente excludente à natureza do sistema capitalista imperialista do segundo: o fim da escravidão. Um mercado de livre comércio no plano mundial era um componente essencial da expansão imperialista inglesa. A livre circulação de mercadorias – a força de trabalho incluída – era sinônimo de barateamento de produtos importados pela Inglaterra e predomínio de suas mercadorias nos mercados consumidores. A extinção do tráfico em 1850 e, mais tarde, a questão Christie significaram uma certa estabilização nas relações dos dois países. A Inglaterra mostrou-se satisfeita com os avanços obtidos, ao mesmo tempo que constatou
que ir além em suas pressões acarretaria praticamente uma situação não desejada de confronto com o governo imperial. Este, por seu turno, tampouco interessado no confronto, buscou assumir e dirigir o encaminhamento da questão da mão-de-obra, abandonando a política de concessões formais e manutenção real do tráfico e assumindo a necessidade de reformas que, ao final, resultariam no fim da escravidão. (...)Apenas no Paraguai, a unidade nacional e a estabilidade política, inicialmente sob a liderança de Francia e, mais tarde, sob o comando de Dom Carlos López, haviam sido atingidas logo após a independência. Entre as lideranças caudilhas do restante da região emergiu, a partir do final da década de 1820, Juan Manoel Rosas. Tornando-se a figura exponencial das províncias Unidas do Rio da Prata, basicamente ambicionava a recomposição do antigo Vice-Reinado do prata sob seu controle. Neste sentido, interferia constantemente na política uruguaia e não reconhecia a independência paraguaia. Por outro lado, teve que assegurar a soberania das Províncias Unidas contra as intervenções militares inglesa e francesa, que objetivavam a obtenção do maior número possível de vantagens comerciais na região. Nesse quadro, que resumimos de forma bastante esquemática, o Brasil tinha alguns interesses: (1) impedir a formação de um estado nacional forte e que unificasse o antigo Vice-Reinado do Rio da Prata; (2) assegurar a livre navegação pela bacia do Prata; (3) fazer valer determinadas reivindicações territoriais nas áreas de fronteira; (4) estar presente de forma marcante na política interna uruguaia; (5) garantir a não restauração da presença européia na região. De um modo geral, foram esses mesmos objetivos que estiveram presentes na política brasileira no Prata nas décadas de 1850 e 1860. O que é característico do período anterior é que a ação brasileira não buscou sistematicamente a consecução desses objetivos. A política imperial oscilava, respondia a iniciativas que partiam, em sua maioria, principalmente de Rosas. Ora alinhava-se com a ação dos diplomatas e navios ingleses e franceses, ora reagia positivamente às iniciativas de Rosas contra a presença dessas potências66, aceitando mesmo uma eventual aliança; mostrava uma postura de neutralidade que, entretanto, paulatinamente seria substituída por atitudes de hostilidade. (...)As razões para essa política imediata pouco clara – ainda que apoiada, como dissemos, em objetivos constantes – residiam, por um lado, na crescente tensão que se acumulava nas relações do Império com a Inglaterra no que diz respeito à questão do tráfico externo de escravos e, por outro, na instabilidade da política interna do Império. (...)Durante os anos 50, a Inglaterra prosseguiu com medidas de apreensão e com pressões sobre o governo brasileiro no que diz respeito às condições dos africanos escravos no território nacional, teoricamente livres. Essas pressões culminaram em 1862 com a questão Christie. (...) O governo paraguaio poderia considerar – como de fato considerou – a conjuntura resultante do sucesso da intervenção militar brasileira no território oriental algo mais amplo que a mera deposição do governo blanco, hostil aos interesses brasileiros. A neutralização do Uruguai e os entendimentos entre Brasil e Argentina isolavam completamente o governo paraguaio. Toda a ação brasileira no decorrer da crise uruguaia mostrava claramente uma crescente disposição de nosso governo em resolver suas pendências no Prata pela via militar. O temor paraguaio de se tornar o próximo alvo brasileiro parecia bastante razoável. Contudo, dois fatos são evidentes na situação como ela se apresentava naquele momento:
1. o Brasil não só não estava preparado para uma guerra como o Paraguai, como também não esperava que a reação de López se desse no campo militar – até mesmo por subestimação do poderio militar paraguaio e superestimação do valor militar da Marinha imperial;
2. a política externa de López tendia ao abandono do isolacionismo tradicional paraguaio e apostava na construção de um poderio militar para fazer valer seus interesses. A mediação de López no conflito civil argentino em 1859 e a construção de um poderoso exército são indicadores dessa mudança de rumo na política externa guarani. Mesmo que as vistas brasileiras estivessem se voltando cada vez mais para o Paraguai, não havia ainda uma iminência de guerra que justificasse a atitude paraguaia como uma ação militar defensiva. A combinação de recursos diplomáticos, no sentido de romper seu isolamento e alertando para o perigo de uma hegemonia brasileira clara na região, e de uma atitude de firme oposição ao possível estreitamento do cerco brasileiro, sustentada num poderio militar razoável, era ainda um caminho possível e – arriscaríamos prever sobre fatos acontecidos – com maiores chances de êxito para López. É fácil ver hoje que López, ao superestimar seu poderio militar, as contradições entre Brasil e Argentina e, particularmente, as contradições internas a este último país, arriscou em uma só cartada a sorte do Paraguai. Sua tenacidade e determinação, aliadas ao heroísmo quase sem limites do povo guarani, prolongando indefinidamente o conflito e resultando na extenuação do Brasil vitorioso, não permitem dúvidas sobre isso. Em momento algum do conflito o Paraguai esteve perto da vitória, e após a derrota naval de Riachuelo, em junho de 1865, sua sorte estava selada. O fato é que, em 1865, o Brasil viu-se, em parte como resultado de sua política de busca de hegemonia no Prata, em parte devido à escolha paraguaia do caminho da resistência militar a essa política, envolvido numa guerra de proporções nunca antes – e tampouco posteriormente – experimentadas.
A GUERRA DO PARAGUAI. SALLES, Ricardo – Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1990.
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