Pular para o conteúdo principal

A constituição de 1946 - O poder constituinte e as transformações políticas e sociais


A Assembléia Nacional Constituinte, nos regimes liberais-representativos, é um órgão de natureza especial. Trata-se de uma assembléia com poderes extraordinários que tem a função precípua de construir as bases jurídico-políticas do país. O trabalho constituinte consiste em definir princípios gerais e em torno deles estabelecer um conjunto orgânico de regras e instituições. A regulamentação desse conjunto legal, para a sua aplicação na vida cotidiana, fica em geral por conta dos órgãos legislativos ordinários.
O trabalho constituinte, mesmo voltado para o futuro, está imerso nas circunstâncias políticas do presente. É exatamente por isso que cada resolução aprovada, cada detalhe colocado no texto constitucional, ainda que vago, genérico ou afirmativo, expressa os diversos pactos que se estabelecem entre as forças políticas ali representadas.
A Constituinte de 1946, eleita em 2 de dezembro de 1945, iniciou seus trabalhos em 2 de fevereiro seguinte sob o impacto da derrota do nazi-fascismo na Europa e do fim do Estado Novo no Brasil. Não por acaso, durante os primeiros meses de discussão, de fevereiro a maio, promoveu-se um duro julgamento do regime anterior. Produziu-se, em suma, o que se denominou a "autópsia da ditadura".
Outra marca distintiva da Constituinte de 1946 em comparação com as anteriores foi sua heterogeneidade político-ideológica. Dela participaram deputados e senadores eleitos na legenda de nove partidos, ou seja, representativos de todo o espectro político e donos de diferentes trajetórias políticas até aquele momento. No mesmo plenário estiveram presentes, incumbidos da elaboração da nova Carta, o ex-presidente Artur Bernardes, do Partido Republicano (PR), e Luís Carlos Prestes, do Partido Comunista do Brasil (PCB), que como líder tenentista fora perseguido ferozmente por Bernardes na década de 1920; os udenistas Otávio Mangabeira e Afonso Arinos, notórios opositores do Estado Novo, mas também Gustavo Capanema e Agamenon Magalhães, importantes ministros do antigo regime; o próprio Getúlio Vargas, que, apesar da notoriedade, teve uma participação discreta e inconstante.
Unidas em torno de um projeto liberal-democrático, as forças predominantes na Constituinte, a saber, o Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN), que juntos ocupavam cerca de 80% das cadeiras, produziram um texto preocupado fundamentalmente em delimitar o raio de ação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para evitar uma nova experiência política baseada no poder discricionário do Executivo.
O mandato presidencial foi fixado em cinco anos, e foi mantida a proibição da reeleição para cargos executivos. As atribuições do Congresso foram fortalecidas, principalmente as que diziam respeito à inspeção das ações do Executivo. Todas as medidas administrativas ou de política econômica do governo, mesmo as de curto prazo, deveriam receber a autorização do Congresso. Foi restaurado o princípio federalista, estabelecendo-se a divisão de atribuições entre a União, os estados e os municípios.
Esse controle congressual, no entanto, terminaria por ser evitado pelos presidentes da República que se sucederam, os quais tiveram ampla liberdade para criar órgãos de natureza técnica. Por sua vez, principalmente no segundo governo Vargas (1951-1954) e no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), esses órgãos passaram a deter enormes poderes para implementar a modernização da economia brasileira, o que seria feito em grande parte à margem da estrutura partidária.
No que se refere ao voto, a nova Constituição extinguiu a bancada profissional, presente na Carta de 1934, e ampliou a obrigatoriedade do voto feminino, antes restrita às mulheres que exercessem cargo público remunerado. Quanto à composição da Câmara dos Deputados, foi estabelecido um critério que beneficiou a representação dos estados de menor população em detrimento dos estados mais populosos. Essa medida, justificada pelo argumento da necessidade de se manter o equilíbrio federativo, terminou por fortalecer os grupos políticos mais conservadores, amplamente majoritários nos estados menores, em detrimento de agremiações que tinham maior representação em estados mais populosos, como os partidos à esquerda do espectro político.
No plano social, a Constituinte optou por uma postura conservadora. No tocante ao direito de greve, aprovou um texto genérico que reconhecia o direito, mas deixava para o Congresso uma futura regulamentação, que terminou por não vir. Além disso, manteve dois fundamentos da estrutura corporativista advinda do regime anterior: o imposto sindical, passaporte para o aparecimento e a manutenção dos sindicatos controlados pelos "pelegos", e a possibilidade de o Estado intervir na vida sindical. Como na ideologia estado-novista, o sindicato continuava a ser visto como órgão de colaboração do Estado. Nesse caso, era clara a contradição com a ideologia liberal apregoada pela quase totalidade dos constituintes. Uma vez mais, foram as circunstâncias de natureza conjuntural, marcadas pela ampliação da luta sindical, que definiram o texto constitucional: a estrutura sindical anterior mostrava-se adequada para assegurar a ordem social e política.
No dia 18 de setembro de 1946, o novo texto constitucional foi aprovado e Assembléia Nacional Constituinte se transformou em Congresso ordinário. Durante o governo Dutra, a nova Constituição seria interpretada tanto para assegurar direitos como para restringir o pluralismo político, como aconteceu quando da cassação do registro do PCB, em maio de 1947.
Américo Freire

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Questões discusivas com gabarito comentado - Renascimento Cultural

Para não perder as novidades, inscreva-se no Canal HIstória em gotas:   https://www.youtube.com/channel/UC23whF6cXzlap-O76f1uyOw/videos?sub_confirmation=1 1 .    Um dos aspectos mais importantes da nova ordem decorrente do Renascimento foi a formação das repúblicas italianas. Dentre elas, se destacaram Florença e Veneza. Essas repúblicas inovaram no sentido das suas formas de governo, assim como na redefinição do lugar do homem no mundo, inspirando a partir daí novas formas de representá-lo. a) Tomando o caso de Florença, explique como funcionavam as repúblicas italianas, levando em conta a organização política e os vínculos entre os cidadãos e a cidade, e indique o nome do principal representante das ideias sobre a política florentina no século XVI. b) Analise o papel de Veneza no desenvolvimento do comércio europeu, e suas relações com o Oriente.     2 .    As imagens abaixo ilustram alguns procedimentos utilizados por um novo modo de conhecer e explicar a realid

Questões discussivas com gabarito sobre Primeira guerra e crise de 29

Para não perder as novidades, inscreva-se no Canal e clique no sino: https://www.youtube.com/channel/UC23whF6cXzlap-O76f1uyOw/videos?sub_confirmation=1 #partiuauladoarão 1 . (Unifesp 2011)  Numa quinta-feira, 24 de outubro de 1929, 12.894.650 ações mudaram de mãos, foram vendidas na Bolsa de Nova Iorque. Na terça-feira, 29 de outubro do mesmo ano, o dia mais devastador da história das bolsas de valores, 16.410.030 ações foram negociadas a preços que destruíam os sonhos de rápido enriquecimento de milhares dos seus proprietários. A crise da economia capitalista norte-americana estendeu-se no tempo e no espaço. As economias da Europa e da América Latina foram duramente atingidas. Franklin Delano Roosevelt, eleito presidente dos Estados Unidos em 1932, procurou combater a crise e os seus efeitos sociais por meio de um programa político conhecido como New Deal . a) Identifique dois motivos da rápida expansão da crise para fora da economia norte-americana.

Iluminismo - questões discursivas com gabarito comentado

Conheça meu curso intensivo de História do Brasil https://go.hotmart.com/P57899543C 1 .    A liberdade política é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Montesquieu. O espírito das leis, 1748 . O direito eleitoral ampliado, a dominação do parlamento, a debilidade do governo, a insignificância do presidente e a prática do referendo não respondem nem ao caráter, nem à missão que o Estado alemão deve cumprir tanto no presente como no futuro próximo. Jornal Kölnishe Zeitung , 04/08/1919. Adaptado de REIS FILHO, Daniel Aarão (org.). História do século XX. Volume 2. Rio de Janeiro: Record, 2002. Os trechos apresentam aspe