EUROPA E SISTEMA INTERNACIONAL
A profunda crise que devastava a economia européia no imediato pós-guerra estava ancorada num círculo vicioso. As estruturas produtivas destruídas só poderiam ser reconstituídas mediante importações. Contudo, não havia meios de financiar essas importações, a não ser reativando a produção e, portanto, as exportações. A crise consistia, então, em aguda carência de divisas. A tormenta afetava a estabilidade dos regimes democráticos reinstalados. O desemprego e a corrosão dos salários agitavam o meio sindical. Os partidos de esquerda – socialistas e comunistas – ampliavam suas bases sociais e eleitorais. A resposta à crise, condicionada pelo ambiente da Guerra Fria, foi o lançamento do Plano Marshall. Baseado na idéia de transferência de bilhões de dólares dos Estados Unidos para a Europa, ele fornecia a chave para a reativação das economias nacionais, sob a base de planos e controles multilaterais. Anunciado em junho de 1947 como proposta para toda a Europa (inclusive para a União Soviética), ele representava um instrumento da Doutrina Truman. Visava a reconstituir economias de mercado saudáveis no Ocidente e bloquear o processo de fechamento das economias do Leste, onde o poder dos partidos comunistas se tornava rapidamente asfixiante. A retirada da União Soviética e dos países da sua área de influência das negociações do Plano reduziu sua abrangência à parte oeste do continente. Em abril de 1948, foram assinados os protocolos finais, envolvendo fundos e créditos destinados a dezesseis países. Em junho, uma reforma monetária aplicada sem o aval soviético nas zonas ocidentais da Alemanha assinalou a extensão do Plano à maior parte da potência ocupada.18 A injeção de dólares propiciada pelos Estados Unidos teve efeitos imediatos. No ambiente de otimismo e reconstrução que se formava, reduziam-se as tensões sociais e se fortaleciam os partidos conservadores. Na Alemanha, em meio ao drama do bloqueio de Berlim, surgia a República Federal, integrada estrategicamente à Europa ocidental. O nascimento da RFA recolocou em cena, sob nova forma, a velha “questão alemã”. A França – que inutilmente tentara perpetuar a fragmentação do território germânico em quatro zonas sujeitas a controle internacional – encarava com temor o reaparecimento de um Estado alemão.19 Em maio de 1949, foi aprovada a Lei Fundamental de Bonn e poucos meses depois era eleito um governo, chefiado por Konrad Adenauer. A região metalúrgica do Sarre, que a França sonhava incorporar ao seu território, foi confirmada como parte da Alemanha. O governo de Bonn solicitava o direito de ampliar sua produção de carvão e aço da Bacia do Ruhr, colocada sob controle internacional. A lógica do conflito franco-alemão parecia se repetir, refazendo o impasse dos anos que seguiram a Primeira Guerra Mundial. A França, atolada no seu complexo de inferioridade, procurava retardar o inevitável reerguimento alemão. Na Alemanha, o ressentimento provocado pelas restrições internacionais gerava os primeiros sintomas do ressurgimento do nacionalismo. A tensão entre a França e a República Federal ameaçava transformar-se em uma fissura irreversível no bloco ocidental, que se constituía sob a tutela dos Estados Unidos e no quadro da recém-criada Otan.
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Origens da Comunidade Européia
Origens da Comunidade Européia
Foi nessa atmosfera carregada que surgiu a saída para o impasse. Nos primeiros dias de maio de 1950, era formulada a proposta que ficaria conhecida como Plano Schuman. Em 9 de maio, em nome do Governo francês, o ministro das Relações Exteriores Robert Schuman tornava público o projeto de integração das siderurgias francesa e alemã sob controle de uma autoridade comum, aberta a outros países europeus. Essa proposta, articulada com o primeiro-ministro Adenauer, constituiu o alicerce da Ceca e a fonte original do processo de integração européia. O autor intelectual do Plano tinha sido Jean Monnet, notável diplomata e assessor do Governo francês nas duas guerras do século. Esse homem, que se tornaria o símbolo da União Européia, enxergava a questão sob seu aspecto geopolítico.20 O Plano Schuman visava a estabelecer uma trajetória de fusão das soberanias francesa e alemã, rompendo a lógica de conflito nacional que prevalecera até então. A reunião dos recursos, sob controle comum, introduzia a noção de soberania compartilhada, atenuando os nacionalismos. Em junho de 1950, o Plano Schuman tinha a adesão de Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. O mundo político britânico dividiu-se entre opositores e entusiastas do projeto. Entretanto, o
Governo de Londres retirou-se já nas primeiras trocas de informação, alegando que o projeto envolvia a submissão da soberania britânica a órgãos internacionais. A Ceca, que entrou em funcionamento em 1952, demarcava nova base no relacionamento entre os Estados. A alta autoridade, instalada na sede de Luxemburgo, materializava o enfraquecimento do princípio da soberania. Para a França, essa moldura funcionava como meio de enquadrar a RFA e bloquear o ressurgimento da ameaça alemã. Para a Alemanha Ocidental, era a oportunidade de recuperar parcialmente o estatuto de igualdade com os demais Estados europeus. A idéia da Comunidade Européia surgiu no interior da Ceca, presidida então por Jean Monnet. O tratado histórico foi assinado em Roma, a 24 de março de 1957. Bruxelas foi escolhida como sede da Europa comunitária que acabava de nascer. A opção por Bruxelas foi pequena mas significativa derrota conceitual da equipe de Jean Monnet, que defendia a transformação de Luxemburgo em “distrito europeu”. A proposta do “distrito europeu” procurava edificar um símbolo comunitário e federalista: a Europa representaria uma entidade definida, detentora de soberanias compartilhadas. A escolha de Bruxelas manifestava outra disposição de espírito: dispersando as sedes dos órgãos comunitários, afirmava-se o Estado nacional como detentor básico de soberanias e a Europa aparecia unicamente como produto de acordos específicos entre os Estados. Não é casual que as duas “capitais européias” – Bruxelas e Luxemburgo – ficassem situadas fora dos territórios francês e alemão, em pequenos países localizados na zona de fronteira das duas potências continentais.
Governo de Londres retirou-se já nas primeiras trocas de informação, alegando que o projeto envolvia a submissão da soberania britânica a órgãos internacionais. A Ceca, que entrou em funcionamento em 1952, demarcava nova base no relacionamento entre os Estados. A alta autoridade, instalada na sede de Luxemburgo, materializava o enfraquecimento do princípio da soberania. Para a França, essa moldura funcionava como meio de enquadrar a RFA e bloquear o ressurgimento da ameaça alemã. Para a Alemanha Ocidental, era a oportunidade de recuperar parcialmente o estatuto de igualdade com os demais Estados europeus. A idéia da Comunidade Européia surgiu no interior da Ceca, presidida então por Jean Monnet. O tratado histórico foi assinado em Roma, a 24 de março de 1957. Bruxelas foi escolhida como sede da Europa comunitária que acabava de nascer. A opção por Bruxelas foi pequena mas significativa derrota conceitual da equipe de Jean Monnet, que defendia a transformação de Luxemburgo em “distrito europeu”. A proposta do “distrito europeu” procurava edificar um símbolo comunitário e federalista: a Europa representaria uma entidade definida, detentora de soberanias compartilhadas. A escolha de Bruxelas manifestava outra disposição de espírito: dispersando as sedes dos órgãos comunitários, afirmava-se o Estado nacional como detentor básico de soberanias e a Europa aparecia unicamente como produto de acordos específicos entre os Estados. Não é casual que as duas “capitais européias” – Bruxelas e Luxemburgo – ficassem situadas fora dos territórios francês e alemão, em pequenos países localizados na zona de fronteira das duas potências continentais.
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Grã-Bretanha e Europa
Grã-Bretanha e Europa
No pós-guerra, a política externa britânica organizava-se em torno de três conjuntos: o Império, que lentamente se transformava em Comunidade Britânica; a Aliança Atlântica com Washington; a Europa ocidental. Na ordem de prioridades de Londres, a Europa ocupava apenas a terceira posição. A Grã-Bretanha estava pronta para estabelecer acordos clássicos entre Estados mas sequer sonhava conformar-se à posição de parceiro num conjunto europeu. A resposta britânica à Comunidade Européia foi a constituição, em 1959, de outra organização – a Associação Européia de Livre Comércio (Aelc). A Aelc não tinha as ambições da Comunidade, que envolviam a criação de instituições supranacionais, circunscrevendo-se à condição de típico acordo entre Estados para a diminuição de certas tarifas alfandegárias e a consecução de acordos bilaterais de comércio. Entretanto, a posição britânica evoluía lentamente, sob o impacto dos acontecimentos mundiais. Em 1960, a nova administração americana de John Kennedy rompia a inércia do governo Eisenhower frente à Comunidade Européia. De Washington, crescia a pressão para o ingresso britânico na Comunidade, a fim de aprofundar os laços entre a componente européia e a componente americana do Ocidente. Simultaneamente, Londres dobrava-se à evidência de que seria
impossível sustentar o que restava do Império Britânico. Depois da independência das antigas colônias asiáticas, soava a hora das colônias africanas: a esfera de influência britânica restringia-se cada vez mais, enquanto crescia na mesma proporção o poder de atração da Europa. Em agosto de 1961, finalmente, a Grã-Bretanha formulava um pedido oficial de adesão. Em janeiro de 1963, contudo, o general Charles De Gaulle, no seu estilo intempestivo, concedeu entrevista coletiva na qual remeteu o ingresso britânico para um futuro indeterminado e o condicionou a substantiva mudança na atitude diplomática tradicional de Londres. Em conseqüência, por uma década inteira, a Grã-Bretanha continuaria afastada da Europa. “A Europa unida, do Atlântico aos Urais” – com essa fórmula célebre, De Gaulle ergueu uma barreira contra a unidade européia. A oposição do general à entrada da Grã-Bretanha refletia uma oposição mais profunda: ele não aceitava, e sequer compreendia, a noção de soberanias compartilhadas. O Estado-nação, essa era a única fonte legítima da soberania: De Gaulle se opunha ao ingresso britânico porque se opunha à própria Comunidade Européia. A “Europa unida” de que falava De Gaulle era outra Europa, que só existia na sua imaginação nostálgica. Era a “Europa das Pátrias”, baseada nas relações multilaterais de cooperação estabelecidas entre Estados. “Do Atlântico aos Urais” – a abrangência geográfica da Europa do general – queria dizer: uma Europa sem “cortina de ferro”, sem União Soviética e sem Pacto de Varsóvia, sem … Estados Unidos e Otan. Atrás da oposição do general à Comunidade, entrevia-se sua oposição ao mundo bipolar da Guerra Fria e à divisão da Europa em esferas de influência das superpotências nucleares. De Gaulle sonhava com um passado perdido – o tempo do equilíbrio multipolar europeu, quando os Estados Unidos se mantinham isolados da Europa e, no lugar da União Soviética, existia a velha Rússia. De Gaulle foi um nacionalista clássico. A política externa gaullista jamais desafiou os fundamentos da arquitetura estratégica da Europa ocidental, mas caracterizou-se pela tentativa de alçar a França à condição de liderança européia, contraposta à dupla hegemonia das superpotências. A Comunidade Européia – construída à sombra da “cortina de ferro” e inscrita na lógica da esfera de influência americana – surgia aos olhos do general como uma camisa de força que tolhia a liberdade francesa. O alargamento da Comunidade realizou-se sobre a lógica geográfica da Guerra Fria. Na segunda metade da década de 1980, os limites da “Europa dos Doze” praticamente coincidiam com os da zona européia coberta pela Otan. Excluída a Turquia, sobravam apenas dois integrantes europeus da Aliança Atlântica fora do conjunto comunitário: a Islândia e a Noruega. Os países neutros de economia de mercado – Suécia, Finlândia, Suíça e Áustria – não participavam de nenhuma das duas estruturas básicas da Europa ocidental. A identificação quase completa dos mapas europeus da Otan e da CE não era casual. Ela revelava a natureza íntima da Comunidade – sua condição de pilar europeu do Ocidente construído pela Guerra Fria. Lastreada desde o início pelo eixo franco-alemão, a Comunidade soldava a aliança entre as potências que tinham atrás de si uma história de conflitos e rivalidade nacionalista. Assim, criava o arcabouço indispensável para a hegemonia dos Estados Unidos sobre a Europa ocidental, num cenário internacional definido pela bipolaridade de poder. União Européia no pós-Guerra Fria A reunião do Conselho Europeu, de dezembro de 1991, na cidade holandesa de Maastricht, definiu a estratégia comunitária diante do fim da Guerra Fria. Pouco mais de um ano antes, em outubro de 1990, tinha se consumado a reunificação alemã. O Tratado de Maastricht, assinado em fevereiro de 1992, substituiu juridicamente o Tratado de Roma como documento de base da CE e delineou novas metas para o aprofundamento da integração européia. O núcleo das decisões de Maastricht residia na União Econômica e Monetária (UEM). Mas o Tratado de Maastricht não se limitou à economia. Pela primeira vez na história da Comunidade, e por insistência da França, foi prevista a definição de políticas externa e de segurança comuns, o que conferiria à Comunidade (que passava a se denominar União Européia) o estatuto de ator do sistema diplomático internacional.21 Teoricamente, a meta da defesa comum entrou em conflito com a Otan, que materializou desde 1949 uma estrutura militar integrada sob a liderança dos Estados Unidos. O projeto de criação de uma estrutura militar européia, acalentado pela França desde a época do general De Gaulle, corresponderia à redução da influência estratégica de Washington na Europa. Por isso, sob pressão britânica e holandesa, a França foi levada a aceitar uma solução de compromisso: Maastricht estabeleceu que as estruturas de defesa européias estariam subordinadas à Otan. O Tratado de Maastricht foi, antes de tudo, uma resposta à reunificação alemã. Essa resposta atualizou o método empregado por Monnet na década de l950. Se o rearmamento alemão tinha exigido a fusão de soberanias no domínio crucial da siderurgia, o ressurgimento de uma potência alemã unificada na década de 1990 exigia a fusão de soberanias nos domínios
vitais da moeda e da política externa. Ou seja, a Alemanha sacrificava o seu precioso marco e o privilégio de uma afirmação autônoma na cena mundial no altar da aliança estratégica que a vinculava à França.22 O lançamento do euro, em 1999, foi acompanhado por animada polêmica sobre os riscos do projeto comunitário. Alguns analistas chamaram a atenção para o choque potencial entre os interesses particulares dos Estados nacionais e as orientações comuns do Banco Central Europeu, que poderia provocar o colapso da Europa unificada.23 Outros criticaram a falta de transparência da nova autoridade monetária européia e a carência de controles democráticos sobre a dupla burocracia de Bruxelas e Frankfurt. Outros ainda assinalaram que a UEM modificava as bases do relacionamento transatlântico e examinaram o potencial de conflito entre a “Europa do euro” e os Estados Unidos no campo do comércio internacional, sugerindo estreita cooperação para limitar as flutuações cambiais entre as duas supermoedas.24 No interior da União Européia, a Grã-Bretanha apareceu como principal voz dissonante já na reunião do Conselho Europeu que
preparou o Tratado. Argumentando na defesa da soberania nacional, Londres conseguiu incluir nos acordos uma cláusula especial que lhe conferia o direito de decidir mais tarde sobre a sua participação na UEM. Assim, os britânicos revelavam, mais uma vez, a sua tradicional desconfiança à noção da “união cada vez mais estreita” que, desde os tempos de Monnet, constituiu a divisa da integração européia. A desconfiança cresceu em 1990, quando a reunificação alemã atualizou o espectro de uma “Europa germânica” – expressão que chegou a ser empregada em público, imprudentemente, por assessores diretos da então primeira-ministra Margaret Thatcher. A ambigüidade sobre o projeto da UEM atravessou toda a administração John Major e acabou por corroer a unidade do Partido Conservador, que se dividiu entre a corrente europeísta, o grupo centrista do primeiro-ministro e os “eurocéticos”.25 O “novo trabalhismo” de Tony Blair prepara, cautelosamente, uma reviravolta na política para a Europa. Depois de prometer um plebiscito sobre a UEM, seu governo emitiu sinais favoráveis ao euro e distribuiu declarações europeístas. Nessa linha, Blair procurou solucionar a duplicidade que mina a coerência da política britânica para a Europa desde os tempos do Plano Schuman. Mas a plena adesão britânica ao projeto europeu abriria novo cenário, no qual o “motor franco-alemão” da integração cederia lugar a um tripé de potências. Com ou sem a adesão britânica à UEM, a União Européia encontra- se numa encruzilhada política, criada pela Doutrina Bush. A oposição franco-alemã à segunda Guerra do Golfo, em 2003, provou que o “motor europeu” original continua em funcionamento.
impossível sustentar o que restava do Império Britânico. Depois da independência das antigas colônias asiáticas, soava a hora das colônias africanas: a esfera de influência britânica restringia-se cada vez mais, enquanto crescia na mesma proporção o poder de atração da Europa. Em agosto de 1961, finalmente, a Grã-Bretanha formulava um pedido oficial de adesão. Em janeiro de 1963, contudo, o general Charles De Gaulle, no seu estilo intempestivo, concedeu entrevista coletiva na qual remeteu o ingresso britânico para um futuro indeterminado e o condicionou a substantiva mudança na atitude diplomática tradicional de Londres. Em conseqüência, por uma década inteira, a Grã-Bretanha continuaria afastada da Europa. “A Europa unida, do Atlântico aos Urais” – com essa fórmula célebre, De Gaulle ergueu uma barreira contra a unidade européia. A oposição do general à entrada da Grã-Bretanha refletia uma oposição mais profunda: ele não aceitava, e sequer compreendia, a noção de soberanias compartilhadas. O Estado-nação, essa era a única fonte legítima da soberania: De Gaulle se opunha ao ingresso britânico porque se opunha à própria Comunidade Européia. A “Europa unida” de que falava De Gaulle era outra Europa, que só existia na sua imaginação nostálgica. Era a “Europa das Pátrias”, baseada nas relações multilaterais de cooperação estabelecidas entre Estados. “Do Atlântico aos Urais” – a abrangência geográfica da Europa do general – queria dizer: uma Europa sem “cortina de ferro”, sem União Soviética e sem Pacto de Varsóvia, sem … Estados Unidos e Otan. Atrás da oposição do general à Comunidade, entrevia-se sua oposição ao mundo bipolar da Guerra Fria e à divisão da Europa em esferas de influência das superpotências nucleares. De Gaulle sonhava com um passado perdido – o tempo do equilíbrio multipolar europeu, quando os Estados Unidos se mantinham isolados da Europa e, no lugar da União Soviética, existia a velha Rússia. De Gaulle foi um nacionalista clássico. A política externa gaullista jamais desafiou os fundamentos da arquitetura estratégica da Europa ocidental, mas caracterizou-se pela tentativa de alçar a França à condição de liderança européia, contraposta à dupla hegemonia das superpotências. A Comunidade Européia – construída à sombra da “cortina de ferro” e inscrita na lógica da esfera de influência americana – surgia aos olhos do general como uma camisa de força que tolhia a liberdade francesa. O alargamento da Comunidade realizou-se sobre a lógica geográfica da Guerra Fria. Na segunda metade da década de 1980, os limites da “Europa dos Doze” praticamente coincidiam com os da zona européia coberta pela Otan. Excluída a Turquia, sobravam apenas dois integrantes europeus da Aliança Atlântica fora do conjunto comunitário: a Islândia e a Noruega. Os países neutros de economia de mercado – Suécia, Finlândia, Suíça e Áustria – não participavam de nenhuma das duas estruturas básicas da Europa ocidental. A identificação quase completa dos mapas europeus da Otan e da CE não era casual. Ela revelava a natureza íntima da Comunidade – sua condição de pilar europeu do Ocidente construído pela Guerra Fria. Lastreada desde o início pelo eixo franco-alemão, a Comunidade soldava a aliança entre as potências que tinham atrás de si uma história de conflitos e rivalidade nacionalista. Assim, criava o arcabouço indispensável para a hegemonia dos Estados Unidos sobre a Europa ocidental, num cenário internacional definido pela bipolaridade de poder. União Européia no pós-Guerra Fria A reunião do Conselho Europeu, de dezembro de 1991, na cidade holandesa de Maastricht, definiu a estratégia comunitária diante do fim da Guerra Fria. Pouco mais de um ano antes, em outubro de 1990, tinha se consumado a reunificação alemã. O Tratado de Maastricht, assinado em fevereiro de 1992, substituiu juridicamente o Tratado de Roma como documento de base da CE e delineou novas metas para o aprofundamento da integração européia. O núcleo das decisões de Maastricht residia na União Econômica e Monetária (UEM). Mas o Tratado de Maastricht não se limitou à economia. Pela primeira vez na história da Comunidade, e por insistência da França, foi prevista a definição de políticas externa e de segurança comuns, o que conferiria à Comunidade (que passava a se denominar União Européia) o estatuto de ator do sistema diplomático internacional.21 Teoricamente, a meta da defesa comum entrou em conflito com a Otan, que materializou desde 1949 uma estrutura militar integrada sob a liderança dos Estados Unidos. O projeto de criação de uma estrutura militar européia, acalentado pela França desde a época do general De Gaulle, corresponderia à redução da influência estratégica de Washington na Europa. Por isso, sob pressão britânica e holandesa, a França foi levada a aceitar uma solução de compromisso: Maastricht estabeleceu que as estruturas de defesa européias estariam subordinadas à Otan. O Tratado de Maastricht foi, antes de tudo, uma resposta à reunificação alemã. Essa resposta atualizou o método empregado por Monnet na década de l950. Se o rearmamento alemão tinha exigido a fusão de soberanias no domínio crucial da siderurgia, o ressurgimento de uma potência alemã unificada na década de 1990 exigia a fusão de soberanias nos domínios
vitais da moeda e da política externa. Ou seja, a Alemanha sacrificava o seu precioso marco e o privilégio de uma afirmação autônoma na cena mundial no altar da aliança estratégica que a vinculava à França.22 O lançamento do euro, em 1999, foi acompanhado por animada polêmica sobre os riscos do projeto comunitário. Alguns analistas chamaram a atenção para o choque potencial entre os interesses particulares dos Estados nacionais e as orientações comuns do Banco Central Europeu, que poderia provocar o colapso da Europa unificada.23 Outros criticaram a falta de transparência da nova autoridade monetária européia e a carência de controles democráticos sobre a dupla burocracia de Bruxelas e Frankfurt. Outros ainda assinalaram que a UEM modificava as bases do relacionamento transatlântico e examinaram o potencial de conflito entre a “Europa do euro” e os Estados Unidos no campo do comércio internacional, sugerindo estreita cooperação para limitar as flutuações cambiais entre as duas supermoedas.24 No interior da União Européia, a Grã-Bretanha apareceu como principal voz dissonante já na reunião do Conselho Europeu que
preparou o Tratado. Argumentando na defesa da soberania nacional, Londres conseguiu incluir nos acordos uma cláusula especial que lhe conferia o direito de decidir mais tarde sobre a sua participação na UEM. Assim, os britânicos revelavam, mais uma vez, a sua tradicional desconfiança à noção da “união cada vez mais estreita” que, desde os tempos de Monnet, constituiu a divisa da integração européia. A desconfiança cresceu em 1990, quando a reunificação alemã atualizou o espectro de uma “Europa germânica” – expressão que chegou a ser empregada em público, imprudentemente, por assessores diretos da então primeira-ministra Margaret Thatcher. A ambigüidade sobre o projeto da UEM atravessou toda a administração John Major e acabou por corroer a unidade do Partido Conservador, que se dividiu entre a corrente europeísta, o grupo centrista do primeiro-ministro e os “eurocéticos”.25 O “novo trabalhismo” de Tony Blair prepara, cautelosamente, uma reviravolta na política para a Europa. Depois de prometer um plebiscito sobre a UEM, seu governo emitiu sinais favoráveis ao euro e distribuiu declarações europeístas. Nessa linha, Blair procurou solucionar a duplicidade que mina a coerência da política britânica para a Europa desde os tempos do Plano Schuman. Mas a plena adesão britânica ao projeto europeu abriria novo cenário, no qual o “motor franco-alemão” da integração cederia lugar a um tripé de potências. Com ou sem a adesão britânica à UEM, a União Européia encontra- se numa encruzilhada política, criada pela Doutrina Bush. A oposição franco-alemã à segunda Guerra do Golfo, em 2003, provou que o “motor europeu” original continua em funcionamento.
O alinhamento de Londres com Washington provou que o “relacionamento especial” estabelecido por Churchill na Segunda Guerra Mundial e reiterado por Thatcher nos anos 80 é uma política bipartidária. Mas a divisão entre aquilo que o secretário da Defesa americano Donald Rumsfeld denominou a “nova Europa” – a Grã- Bretanha e os novos integrantes da Otan na parte centro-oriental do continente – e o que ele chamou de “velha Europa” – o eixo franco- alemão – atesta as enormes dificuldades para a definição de uma política comum européia.
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Do Atlântico à CEI
Do Atlântico à CEI
O encerramento da Guerra Fria removeu a fronteira geopolítica que limitava a expansão do espaço comunitário, propiciando novo ciclo de alargamento do bloco. Nesse ciclo, completado em 1995, ingressaram na UE três dos quatro Estados neutros de economia de mercado: Áustria, Finlândia e Suécia. Paradoxalmente, o ingresso dos novos membros realizou-se em razão de lógicas herdadas da Guerra Fria. Nas décadas de confrontação bipolar, a neutralidade desses países funcionava como poderoso fator de estabilidade externa. Mas a turbulência geopolítica derivada do desmoronamento do bloco soviético e agravada pelas guerras balcânicas suprimiu a percepção de segurança proporcionada pelo estatuto de neutralidade. No cenário criado com o fim da Guerra Fria, a adesão à UE não configurou apenas o estreitamento de laços com a Europa ocidental, mas também a integração à esfera de segurança ocidental. Esse passo, que representa o abandono parcial do estatuto de neutralidade, aprofundou a fratura geopolítica entre as duas porções do Continente Europeu e colocou no centro da agenda estratégica a integração dos Estados do antigo bloco soviético. A perspectiva de incorporação à Europa comunitária funcionou como poderoso estímulo para as revoluções democráticas de 1989 no Leste Europeu. Desde a edificação de regimes pluripartidários e a deflagração de reformas econômicas de mercado, os Estados que fizeram parte do antigo bloco soviético direcionaram todos os seus esforços de política externa para a meta da integração à UE. O Pacto de Varsóvia e o Comecon foram dissolvidos entre 1990 e 1991. Os Estados que tomaram a dianteira nas reformas econômicas – Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia – constituíram o Grupo de Visegrado, um bloco comercial transitório destinado a acelerar e preparar suas economias para a incorporação à UE. A conversão das economias do Leste Europeu recebeu, desde o início, apoio político e financeiro do Ocidente. O FMI e o Banco Mundial estruturaram programas de financiamento e ajuda externa. Sob os auspícios dos países da Europa ocidental e a liderança francesa, criou-se o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Berd), com sede em Londres.26 A UE, por sua vez, coordenou um programa de ajuda para a reestruturação econômica da Polônia e da Hungria (Phare). Contudo, nenhuma dessas iniciativas representou “novo Plano Marshall”, como muitos sugeriam na época. As economias em transição dependeram, essencialmente, de investimentos externos privados. Depois de completado o ciclo de incorporação dos países neutros, a complexa integração dos Estados do antigo bloco soviético assumiu o lugar mais importante na agenda da UE. A necessidade de reorganizar os mecanismos de decisão do bloco e o impacto do ingresso de economias mais pobres sobre o programa agrícola e os fundos comunitários de ajuda a regiões atrasadas retardaram o processo. Em 2002, finalmente, foi deflagrada a fase final de negociações com dez países da Europa centro-oriental, além dos Estados insulares de Chipre e Malta, no Mediterrâneo. O novo ciclo de alargamento empurrou os limites da UE até as fronteiras da Comunidade de Estados Independentes (CEI). Mas esse alargamento não abrange a maior parte dos Estados surgidos da implosão da antiga Iugoslávia e a Albânia, que configuram uma zona de instabilidade geopolítica balcânica. Também não abrange a Turquia, antiga candidata à adesão que sofre resistências em função da sua identidade cultural muçulmana, da fragilidade da sua democracia e do seu peso demográfico.
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Questão balcânica
Questão balcânica
A fragmentação do Estado iugoslavo assinalou a extinção do otimismo iluminista que se disseminara em 1989, com a queda do Muro de Berlim. A violenta emergência dos nacionalismos balcânicos revelou a força das tendências de desagregação e dos particularismos étnicos e culturais no cenário da globalização. As sucessivas declarações de independência da Eslovênia, da Croácia e da Bósnia-Herzegovina, entre 1991 e 1992, redundaram na guerra civil sangrenta que estilhaçou o Estado erguido por Tito no final da Segunda Guerra Mundial. A Bósnia figurou como núcleo da primeira guerra balcânica da década. O Acordo de Dayton, de 1995, sustentado por forças internacionais de imposição da paz, encerrou esse episódio. A segunda guerra balcânica da década eclodiu na região de Kosovo e provocou, em 1999, longa operação de bombardeio aéreo da Otan contra a Sérvia. A imposição de um protetorado internacional informal sobre Kosovo encerrou o conflito. “Agimos para proteger milhares de pessoas inocentes em Kosovo contra uma ofensiva militar crescente. Encerrar essa tragédia é um imperativo moral”. Com essas palavras, Bill Clinton sintetizou, em rede de televisão, a motivação da Otan, quando se iniciava o mais vasto bombardeio aéreo na Europa desde 1945. Procurando o caminho dos corações da opinião pública, o presidente reciclava o “imperativo moral”, a mais histórica das justificativas utilizadas pela política externa de Washington. Mas, no seu pronunciamento, Clinton forneceu as pistas de outra motivação para a campanha aérea na Sérvia, ao explicar que a operação se destinava “também” a defender o “interesse nacional”: “Agimos para prevenir uma guerra mais vasta, para desarmar um barril de pólvora no coração da Europa, que já explodiu duas vezes com resultados catastróficos”. O barril de pólvora balcânico, com seu epicentro em Kosovo, ameaçava tragar a Albânia, a Macedônia, a Grécia e a Turquia numa explosão capaz de volatilizar toda a frágil ordem geopolítica regional, inclusive as estruturas do flanco sul da Otan. O envolvimento direto da Albânia não era um risco, mas uma certeza. A internacionalização da guerra repercutiria sobre a Macedônia, onde significativa minoria de albaneses étnicos, muçulmanos, convive com a maioria cristã ortodoxa. Uma conflagração na Macedônia seria a senha para o eventual envolvimento direto, em campos opostos, da Grécia e da Turquia. Por essa via, Kosovo ameaçava arrastar os Bálcãs na direção de conflitos que pareciam superados pela história. A rivalidade greco-turca sedimentou-se como eco do confronto secular entre cristãos ortodoxos e muçulmanos na Europa balcânica. Foi essa rivalidade que provocou a invasão turca do norte de Chipre em 1974 e a divisão da ilha entre o Estado greco-cipriota e a entidade turco-cipriota. Durante a guerra da Bósnia, a Turquia participou ativamente das operações encobertas de treinamento e suprimento de armas para as forças muçulmanas, enquanto a Grécia procurou equilibrar-se entre seu compromisso com a Otan e o vasto consenso interno, pan-helênico, favorável à Sérvia e aos sérvios bósnios. O Acordo de Dayton para a Bósnia e o protetorado informal sobre Kosovo aprofundaram a tendência de fragmentação da antiga Iugoslávia em entidades étnicas separadas. Encerradas as hostilidades em Kosovo, o desabamento do regime nacionalista de Milosevic na Sérvia proporcionou as condições para o início do processo de secessão pacífica da república de Montenegro. A conclusão da secessão de Montenegro e a eventual independência de Kosovo configuram novo espaço geopolítico balcânico. A fragmentação política e o equilíbrio de poder entre a Sérvia e a Croácia são as principais características estratégicas da região da antiga Iugoslávia. A Eslovênia, livre de conflitos étnicos internos e culturalmente ligada à Áustria, tende a definir seu futuro fora da moldura balcânica. Os pequenos Estados da Bósnia, da Macedônia, de Montenegro e de Kosovo são potenciais focos de crises étnicas crônicas e permanente instabilidade política. A Albânia é integrante externo da região da antiga Iugoslávia, pois funciona como pólo de atração para os albaneses étnicos da Macedônia e de Kosovo.
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