A pesca da lagosta foi o estopim de um conflito diplomático entre o Brasil e a França nos anos 1960. Os jornais noticiaram amplamente os acontecimentos motivados pela insistência de navios franceses em freqüentar a plataforma continental nordestina. Atraídos pela então farta população de lagosta na costa brasileira, os franceses reclamaram ao Itamaraty vantagens melhores. Em um documento da Sudene - Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste -, de 1962, constava que “nessas conversações a parte francesa mostrou-se: contrária à comercialização de lagostas como importação do Brasil, referindo que os direitos cobrados na França em tal caso se elevam a 35%, e insatisfeita com a restrição imposta à eventual participação sua no capital de sociedades mistas de pesca, que não poderá exceder a 40%”.
Mas a Guerra da Lagosta foi mais além do que diz o lacônico documento da Sudene. Tratou-se sim de um conflito diplomático e militar sem precedentes na História do Brasil e foi pretexto para a emergência de discursos xenófobos e nacionalistas onde se viu, por um lado, a tentativa do governo de usar o episódio para demonstrar força e coesão e, por outro, a intenção clara dos militares de conquistar a confiança da população nas suas tropas. Tudo isso a exatamente um ano antes do golpe de 1964.
A França, por sua vez, vivia momento histórico distinto, mas não menos delicado. Os anos 1960 representaram o começo do fim do colonialismo. Até 1963, quando a Guerra da Lagosta chega ao auge, a França já havia perdido suas colônias na África e, conseqüentemente, áreas marítimas onde explorava e dominava a pesca.
No início de 1961 o governo francês solicita formalmente ao governo brasileiro permissão para que três barcos franceses — Gotte, Lopnk Ael e La Tramontaine — pesquisassem as reservas lagosteiras do Nordeste do Brasil. O Itamaraty apoiou o pedido e conseguiu do governo brasileiro a autorização, desde que o Comando Naval do Recife incluísse controladores de pesca da Marinha na tripulação de cada um dos barcos franceses, condição que foi prontamente aceita. Porém apenas dois barcos se apresentaram: La Tramontine e Olympic, sendo que este não constava na lista original e, paralelamente às atividades dos dois autorizados, vários outros eram vistos pescando em águas nacionais, o que gerou protestos de políticos do Nordeste e Federações de Pesca e dos Sindicatos de Armadores. Eles alegavam que, além de estarem pescando sem autorização, os franceses saqueavam barcos brasileiros e roubavam materiais e produtos da pesca.
A Marinha passa a patrulhar a costa nordestina, até que os primeiros barcos são apreendidos - o Françoise Christine e o Folgor - e rebocados para o porto do Mucuripe, em Fortaleza. Nos primeiros barcos apreendidos era claro o contraste da disparidade tecnológica entre a indústria da pesca dos dois países. Enquanto os armadores brasileiros tinham contato com novas tecnologias havia menos de uma década e onde a maior inovação era a introdução de armadilhas (manzuás) e do guincho para seu recolhimento, além de câmaras frigoríficas nos barcos, os armadores franceses eram bem mais sofisticados. Seus barcos eram verdadeiros navios e, além de frigoríficos, tinham viveiros internos onde a lagosta era mantida viva por ser esta a preferência do paladar francês então.
A pedido do Quai d´Orsay — chancelaria francesa —, os barcos são liberados dois dias depois, sob a condição de que a França impedisse a vinda de novas embarcações. Nos meses seguintes a França insiste que a exploração de lagosta no Brasil fosse arbitrada por uma Corte Internacional, o que foi rechaçado pelo Brasil, que por fim cassa a licença dos barcos de pesquisa. Ao receber o comunicado oficial do governo brasileiro sobre a cassação da licença, o governo francês reage energicamente e decide enviar um navio de guerra — o contratorpedeiro Tartu — para resguardar as atividades de seus lagosteiros no Nordeste brasileiro. O comunicado oficial chega ao Itamaraty em 21 de fevereiro de 1963, quinta-feira da semana do Carnaval daquele ano. O embaixador do Brasil em Paris, Carlos Alves de Souza Filho, é orientado a manter audiência com o presidente francês, general Charles De Gaulle, e tentar demovê-lo da intenção de se enviar uma belonave ao Brasil. Souza Filho é prontamente recebido por De Gaulle, que não determina o retorno do navio de guerra, mas promete ocupar-se pessoalmente do assunto. Inclusive vem da Guerra da Lagosta a controversa frase “o Brasil não é um país sério”, de autoria do embaixador brasileiro mas que foi atribuída a De Gaulle.
A reação na imprensa brasileira é imediata, e desde o início da contenda surgem os primeiros discursos ufanistas por parte de jornalistas e de militares, vangloriando-se da suposta força e competência das forças armadas brasileiras. A mobilização da frotas navais brasileira e francesa tem início. João Goulart cancela viagem já agendada à França, e De Gaulle retribui suspendendo a vinda ao Brasil da delegação de senadores franceses que estava sendo esperada em Recife. De Gaulle viria ao Brasil pela primeira vez somente um ano depois, em 1964, sendo recebido em Brasília pelo general Castelo Branco, primeiro dos ditadores militares a assumir o poder inconstitucionalmente.
Os motivos para a deflagração da Guerra da Lagosta extrapolavam o conflito diplomático ou a demonstração de poderio militar. Os jornais da época especulavam que políticos “bretões” teriam investido US$ 14 milhões na pesca da lagosta em águas brasileiras.
A suposta iminência de guerra é terreno fértil para que as Forças Armadas se mostrem como organizadas e com rápido poder de mobilização. A exemplo da Marinha e Aeronáutica, o Exército Brasileiro assume o conflito como afronta aos interesses nacionais. Diante da reação brasileira, a França não desmobiliza seu efetivo militar deslocado para o Nordeste que escoltava seis lagosteiros franceses a cerca de 120 milhas da costa, então fora das águas brasileiras. Mas o governo francês apresenta duas propostas: alugar seus barcos para armadores brasileiros e criar empresas de capital misto.
O governo brasileiro rechaçou essa proposta por considerar que sua aceitação seria o mesmo que admitir o direito francês à exploração de recursos nacionais. Sobretudo tratando-se de um recurso como a lagosta que já aparecia com importância econômica para o Brasil bem maior do que tinha cerca de oito anos antes, quando da implantação da pesca industrial. Em 1962 o Brasil exportou o equivalente a US$ 62 milhões de lagosta.
O impasse continua nos dias seguintes, até que surge o primeiro sinal de que a Guerra da Lagosta chegaria ao fim, com o anúncio da desmobilização de efetivos militares de lado a lado. Porém a ‘trégua’ duraria apenas uma semana, até que a França recrudescesse seu posicionamento e reforçasse sua frota que guardava os lagosteiros havia mais de 10 dias.
Em vez de findado, o conflito aparenta estar no auge, e continuavam mobilizados os militares brasileiros. Mas em 12 de março daquele ano é anunciada a desmobilização dos franceses. Alguns dos motivos foram que, sem poder pescar, os armadores vinham tendo prejuízos e a manutenção do efetivo militar em alto mar para guarnecer empresas privadas já não soava bem a oposicionistas de De Gaulle e à opinião pública francesa.
Ao que parece, os governos da França e, sobretudo, do Brasil, trataram de cuidar de problemas internos. A questão da lagosta foi relevada a um plano de intermediação internacional. Novamente por iniciativa da França surge uma proposta de que a Corte Permanente de Arbitragem de Haia julgue o caso. O Brasil, talvez até por estar vivendo momento de convulsão interna, não se manifesta.
A xenofobia brasileira
A imprensa registrou sinais de revolta da população desde os primeiros momentos do conflito. No Rio de Janeiro o funcionário público aposentado Rodrigues de Carvalho, 58 anos, foi preso ao pichar a fachada da embaixada francesa. Ao tentar fugir foi preso e na delegacia se dizia indignado com a atitude da França no caso das lagostas brasileiras e por não “haver nossas autoridades se pronunciado a respeito até o momento, resolvi eu próprio, sozinho, exteriorizar a repulsa do povo brasileiro contra essa desfaçatez francesa. Sou nacionalista”.
Este não foi o único caso registrado de revolta quando da “invasão” francesa. Houve protesto diante do prédio da Aliança Francesa em Campinas (SP) e o registro de um caso inusitado em Fortaleza, onde o francês Jean Moreau, foi processado por Aisa Silva, a quem alugara uma casa no Centro. Proprietário de dois barcos que estavam em nome de brasileiros conhecidos seus, Moreau pescava lagosta clandestinamente, transferindo o produto para outros barcos de maior porte provenientes da França que ficavam à espera fundeados em alto-mar. Como não pagou aluguel, a polícia foi a sua procura e descobriu as atividades pesqueiras proibidas. Moreau também não teria pago por um fogão adquirido no comércio local e fugiu da cidade, refugiando-se em Paracuru, 90 quilômetros a Oeste de Fortaleza.
Uma guerra de festim
Desde sua eclosão, a Guerra da Lagosta anunciava-se como um conflito que não chegaria a conseqüências bélicas. Logo no início da crise o Ministério da Informação da França emitiu nota afirmando que “o governo não é favorável à guerra da lagosta, mas resolutamente pacífico.”
O então Capitão dos Portos no Ceará, Hugo Machado, disse que “de forma alguma as forças militares, aqui sediadas, serão atingidas de surpresa, muito embora acreditemos que o impasse será superado pacificamente.” Em Brasília, o Ministério da Marinha divulgou nota onde manifestou a esperança de que o caso da lagosta se encerrasse sem o emprego da força “mas se ela for empregada, saibam todos de quem partiu a iniciativa e que a empresa igualmente não nos intimidou”. A preocupação era maior no discurso da própria imprensa do que dos militares envolvidos.
A capacidade das forças armadas brasileiras era sobre-valorizada não só no círculo militar. Um potencial que não chegou a ser testado de fato, visto que a Guerra da Lagosta, em termos bélicos, não passou de um acontecimento de mobilização de tropas e equipamentos, tendo chegado ao fim sem que um tiro fosse disparado. Foi uma batalha verborrágica, uma guerra de festim.
O pescador e a guerra
É preciso procurar entender como a Guerra da Lagosta refletiu no cotidiano, no trabalho e, sobretudo, na narrativa dos pescadores artesanais de lagosta. A pesquisa bibliográfica e de campo até agora realizada leva a crer que a motivação da “Guerra” foi puramente comercial e capitalista, já que não se registrou nenhuma alteração no cotidiano de pescadores artesanais que pescavam à época. Também é rara a presença de pescadores em notícias de jornais pesquisados e, quando ela aparece, é envolta de mistérios , como foi o caso de um pescador do Rio Grande do Norte cujo barco teria sido afundado por um submarino que surgiu não se soube de onde e muito menos a que país pertencia.
A quase ausência do pescador enquanto personagem da Guerra da Lagosta aponta para algumas hipóteses, e vamos nos ater a duas delas: Primeiro, não foi este o primeiro conflito marítimo de dimensões internacionais que envolveu o Brasil e, conseqüentemente, a indústria da pesca e pescadores artesanais. Cerca de duas décadas antes, com o ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial, os pescadores foram alçados à condição de guardiões da costa. Atendendo ao estilo varguista de coação e controle social, a Marinha determina, em 1942, que mestres de embarcações, capatazes presidentes de colônias de pesca seriam informantes do recém criado Serviço de Informações Secretas no que se referisse à localização de submarinos nazistas que assolavam o litoral brasileiro, muito embora esses pescadores tivessem a vaga (ou nenhuma) idéia do que eram aquelas embarcações. Na imprensa da época não eram raras matérias jornalísticas, editoriais ou artigos ressaltando o valor da “heróica população praieira” na nobre tarefa de defesa do litoral, sem que se considerasse a fragilidade de embarcações a vela diante do poderia bélico dos submarinos alemães.
Assim como no período da Segunda Guerra, durante a Guerra da Lagosta os pescadores aparecem nos discursos oficiais e da imprensa como coadjuvantes compulsórios e não como narradores de uma história que era muito mais um conflito econômico entre nações do que uma guerra de fato. Ora, quando da Guerra da Lagosta, o Brasil ingressara havia oito anos na sua era indústrial pesqueira, via pesca de lagosta. Neste curto período esta indústria atingirá patamares de lucratividade consideráveis, saltando de uma produção anual de 40 toneladas para 1.778 toneladas de caudas congeladas de lagosta para exportação (Labomar,1976). O número de empresas que exploravam a pesca no Ceará era superior a 12, bem maior do que oito anos antes, quando o estabelecimento de empresas do gênero era incipiente.
Neste cenário, a defesa de interesses supostamente nacionais surge mais para defender interesses de um grupo econômico específico do que de toda a população e dos pescadores em geral. Nesse sentido chega a ser emblemática a inclusão da imagem de um jangadeiro na cédula de cinco cruzeiros (a “cédula do índio”, conforme a revista Nossa História, março/2005), emitida a partir de 1961, com a intenção de homenagear a diversidade nacional brasileira em comunhão com a natureza. Não tivesse a pesca atingido os patamares que alcançou, seria o jangadeiro o ‘homenageado´?
“O Brasil não é um país sério”
Vem da Guerra da Lagosta a famosa frase “o Brasil não é um país sério”. As orientações desencontradas recebidas pelo embaixador Alves de Souza, em Paris neste período, teriam feito como que ele pronunciasse a frase. Colhida pelo jornalista Luiz Edgar de Andrade, que trabalhava como correspondente do jornal Estado de São Paulo, foi atribuída a De Gaulle, então presidente da França. Anos depois, o próprio Alves de Souza corrigiu o equívoco em um livro de memória, assumindo a autoria da frase.
Túlio de Souza Muniz - Jornalista e historiador e mestrando em História Social na Universidade Federal do Ceará
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