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Henry Kissinger, Nixon e a diplomacia triangular


A aproximação à China e a "diplomacia triangular"
Se a détente com a União Soviética foi uma condição sine qua non para o desenvolvimento da estratégia multipolar de Richard Nixon e de Henry Kissinger, o aprofundamento das relações entre os Estados Unidos e a China e a tentativa de criação de um triângulo estratégico e diplomático entre Washington, Moscovo e Pequim, foi, porventura, a sua manifestação mais clara.
Uma vez mais, as indicações de que, também nesta área, se preparavam mudanças de vulto surgiram antes mesmo da eleição de Richard Nixon. Vale a pena citar a este respeito um artigo publicado por Nixon na prestigiada revista Foreign Affairs, em Outubro de 1967, onde as suas observações sobre a China e sobre o seu papel na ordem internacional deixavam já antever aquilo que seria depois a sua prática política. Nixon escreveu que, numa perspectiva de longo prazo, seria impraticável "deixar a China para sempre de fora da família das Nações, para aí poder alimentar as suas fantasias, acalentar os seus ódios e ameaçar os seus vizinhos". Aliás, acrescentava Nixon, "o mundo não poderá ser seguro até que a China mude", pelo que o objectivo dos americanos deveria ser "persuadir a China de que tem de mudar", abandonando as suas "ambições imperiais" e concentrando-se na resolução dos seus "problemas internos".
Por detrás da retórica algo paternalista, escondia-se a ideia fundamental dos policy-makers americanos de que uma aproximação norte-americana à China permitiria aos Estados Unidos uma nova margem de manobra nas suas negociações com a União Soviética, justamente devido à crise e ao conflito sino-soviético. Como escreveu Henry Kissinger, "a União Soviética já não podia contar com a hostilidade permanente entre as duas nações mais fortes e populosas do mundo – e ainda mais se se compreendesse que ambas tinham começado a cooperar", pelo que "nas condições de finais da década de 60, a melhoria das relações sino-americanas tornou-se a chave da estratégia soviética da Administração Nixon".
A questão foi sendo amadurecida na Casa Branca. Num encontro do National Security Council's Senior Review Group, realizado a 15 de Maio de 1969 para discutir a política dos Estados Unidos em relação à China, Henry Kissinger criticou "certos kremlinologistas" que acreditavam que "qualquer tentativa para melhorar as nossas relações com a China levaram à ruína do nosso relacionamento com a União Soviética". O conselheiro do Presidente disse que a história ensinava uma lição bem diferente: no relacionamento com duas potências antagonistas é sempre preferível um alinhamento com o mais fraco e não com o mais forte. Ou seja, Kissinger reconhecia não era da opinião que uma política mais "dura" para com os chineses conduzisse a um melhoramento com os Soviéticos. Apesar de existir unanimidade quanto ao desejo de reduzir os riscos de conflito com a China, faltava ainda saber, sumarizou Kissinger, se o melhor meio para esta redução de riscos seria um "alinhamento com os soviéticos", uma "postura mais conciliatória para com a China", ou uma "combinação" de ambas as tácticas.
No Verão de 1969, a Administração Nixon tinha já clarificado a sua posição. Num episódio desconhecido da generalidade dos contemporâneos e de analistas posteriores, em Agosto de 1969, Richard Nixon pediu especificamente ao Presidente do Paquistão, Yahya Khan, que este transmitisse ao governo chinês ao sentimento do governo americano de que o continente asiático "não poderia progredir se uma nação tão vasta como a China continuasse isolada". Doravante, os Estados Unidos não tomariam parte de qualquer iniciativa internacional que tivesse como objectivo promover o isolamento da China.
Por outro lado, o Presidente norte-americano também estava já bem consciente do efeito que a aproximação à China teria nas relações com a União Soviética. Numa conversa com o primeiro-ministro britânico Harold Wilson, a 27 de Janeiro de 1970, Nixon reafirmou a posição americana de que não era possível manter a China "fora da comunidade internacional" e contou a Wilson que o embaixador soviético teria classificado esta política de détente americana com a China como um "dirty trick". Os americanos, porém, estavam determinados em prosseguir o caminho traçado, tanto mais que os progressos registados nas conversações SALT indicavam, no dizer de Nixon, que "podemos falar com os russos e os chineses em simultâneo".
Esta linha de análise ganhou maior acuidade ainda em 1969, quando a crescente hostilidade entre a União Soviética e a China acabou por causar confrontos militares na extensa fronteira entre os dois países. Chegaram a circular rumores, nas chancelarias ocidentais, de um possível ataque nuclear preventivo por parte da União Soviética. Internacionalmente, a China desafiava permanentemente a supremacia da União Soviética no bloco comunista, promovendo uma détente com a Jugoslávia de Tito, elogiando as tentativas da Roménia em seguir uma política externa autónoma, condenando a invasão russa da Checoslováquia e apoiando, ainda que de forma discreta, a posição crescentemente independente dos partidos comunistas da Europa Ocidental. A União Soviética procurou responder, assinando um tratado de comércio e amizade com a Índia, provavelmente o maior rival da China no continente asiático, e negociando um tratado de paz com o Japão, na esperança de promover uma détente Japonesa-Soviética como contraponto à crescente afirmação dos chineses no continente asiático.
De qualquer modo, a crescente rivalidade sino-soviética parecia feita à medida das pretensões norte-americanas de potenciar a diplomacia triangular. Em Janeiro de 1970 iniciaram-se conversações entre os dois países em Varsóvia. No final desse mês o National Security Council fazia já um balanço extremamente positivo daquilo que dizia ser a "implementação da Doutrina de Nixon" nas relações com a China, salientando os progressos a nível comercial, o desenvolvimento de conversações em Varsóvia, a neutralidade americana no conflito Sino-Soviético, a manutenção dos compromissos assumidos com Taiwan. Em suma, o essencial era estar a lidar com a China "com base nas suas acções e não na sua ideologia".
Finalmente, em Fevereiro de 1972, Richard Nixon tornou-se no primeiro Presidente norte-americano a visitar a China. No comunicado conjunto assinado por Nixon e pelo Primeiro-Ministro Chou En-lai, o chamado "Comunicado de Xangai", Estados Unidos e China declaravam que se oporiam a quem quer que tentasse "estabelecer hegemonia" na região da Ásia-Pacífico. Ambos os países também se mostravam dispostos a alargar as suas relações no âmbito científico, cultural e económico. No campo político, a China continuava a reclamar a sua soberania sobre Taiwan, enquanto que os Estados Unidos se comprometiam a "reduzir as suas forças e instalações militares" na ilha, desde que a situação se mantivesse pacífica. No ano seguinte, este entendimento entre os Estados Unidos e a China "tornou-se simultaneamente mais explícito e mais global", como nos diz Henry Kissinger. Num comunicado emitido em Fevereiro de 1973, a China e os Estados Unidos concordavam agora em "resistir [...] conjuntamente [...] à tentativa de qualquer país para dominar o mundo". Deste modo, no período de quase um ano e meio, "as relações sino-americanas tinham-se alterado de uma estridente hostilidade e isolamento para uma aliança de facto"


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