Tecnicamente, a Libéria era uma
colônia da American Colonization Society (Sociedade Americana de Colonização –
SAC), que a fundara em 1822 com o auxílio do governo norte‑americano,
para nela estabelecer afro‑americanos “livres”, desejosos de
fugir da escravatura e do racismo dos brancos, bem como africanos
(recapturados) que a marinha norte‑americana salvara das mãos dos negreiros
que cruzavam o Atlântico. Monróvia, fundada em 1822 pelos primeiros emigrantes
afro‑americanos,
foi o núcleo em torno do qual se desenvolveu a Libéria. Até 1906
aproximadamente, mais de 18 mil africanos do Novo Mundo, na maioria dos casos
com a ajuda da SAC, emigraram anualmente para a Libéria, fixando‑se
em umas três dezenas de povoações próximas da costa do Atlântico, em terras que
aquela sociedade ou o governo liberiano tinham obtido dos chefes africanos da
região. Quase todos os colonos eram afro‑americanos, mas 400
deles, pelo menos, eram afro‑antilhanos originários de Barbados,
que emigraram em 1865 e se instalaram em conjunto em Crozierville, 13 km
adentro de Monróvia. Mais de 5 mil escravos libertos (recapturados),
originários na sua maior parte da região do Congo, também se fixaram na
Libéria, principalmente entre 1844 e 1863, de início confiados aos américo‑liberianos,
designação dada aos colonos africanos vindos do Novo Mundo e a seus
descendentes4. Os américo‑liberianos, que necessitavam de
terras para a agricultura, o comércio e a construção de uma nação forte, e que
enfrentavam a concorrência do Reino Unido e da França, também à procura de
terras para o estabelecimento de entrepostos comerciais e postos militares,
ampliaram consideravelmente o território da Libéria a partir de alguns pontos
isolados da costa que os chefes africanos inicialmente lhes haviam arrendado.
Em dezembro de 1875, quando tal expansão praticamente cessara, o território da
Libéria, segundo o governo, estendia‑se por cerca de 960 km ao longo da
costa do Atlântico, com uma largura de 320 a 400 km, alcançando teoricamente o
Níger (ver figura 11.1). A população compunha‑se de colonos de origem
norte‑americana
(os américo‑liberianos) e africana (os recapturados), além das etnias
autóctones. Tais etnias compreendiam os Vai, os Dei, os Basa, os Kru e os
Grebo, perto da costa, além dos Gola, Kissi, Bandi, Kpele, Loma e Mandinga, no
interior5. Os américo‑liberianos adotaram uma cultura
essencialmente ocidental em seu estilo de vida, instituições políticas, pelo
uso da língua inglesa, do regime da propriedade individual e definitiva do
solo, do cristianismo e da monogamia. Os autóctones eram tradicionalistas ou
muçulmanos, falavam línguas próprias e possuíam o solo em comum. Suas aldeias
eram governadas por chefes e anciãos assistidos por organizações sociopolíticas
ou fundadas na divisão em grupos etários, como os poro (sociedades de homens) e
os sande (sociedades de mulheres). Embora apreciassem a educação ocidental
trazida pelos américo-liberianos e missionários brancos, alguns de seus anciãos
se opunham à difusão do cristianismo e das práticas que interferiam em suas
leis e costumes. Como não dispunha de verdadeiro poderio militar e lhe faltavam
funcionários qualificados e fundos, o governo não podia executar o projeto de
ocupação efetiva do território nacional. Para tanto lhe seria necessário
construir estradas e linhas ferroviárias, postos administrativos e militares,
colônias de povoamento américo‑liberianas em todo o país, ou
assegurar a cooperação dos chefes do interior pagando‑ lhes
regularmente um estipêndio e convidando‑os a “representar” seu
povo na qualidade de “juízes”. Por outro lado, em começos da década de 1880,
quando teve início a corrida para a África (cujo ponto culminante foi a conferência
de Berlim, em 1884‑1885), tornava‑se provável que as potências europeias
se apossassem de grande parte do território que a Libéria reivindicava. A
principal preocupação da Libéria, portanto, era defender o território que havia
adquirido. Em vésperas da corrida a situação não mudara muito na Libéria desde 1847,
data em que se tornou independente da American Colonization Society. Tal como
nos Estados Unidos da América, o Parlamento se compunha de Câmara de
Representantes e Senado. O poder executivo pertencia ao presidente, vice‑presidente,
eleitos pelo povo de dois em dois anos, e ministros, nomeados pelo presidente
com a anuência do Senado. O poder executivo representava‑se em
cada condado – unidade de administração local – por um superintendente que
dirigia a administração. A autoridade do presidente, em teoria, era muito ampla;
mas, como não tinha meios para impô‑la fora de Monróvia, certas famílias américo‑liberianas
detiveram, em alguns casos por várias gerações, sob o governo dos republicanos
e dos True Whigs, um poder político considerável à escala dos condados. Entre
tais famílias, que um crítico liberiano chamou ironicamente de “lordes e
nobres” da Libéria, citam‑se os Hoff, os Sherman e os Watson,
do condado de Cape Mount; os Barclay, os Coleman, os Cooper, os Dennis, os
Grimes, os Howard, os Johnson, os King e os Morris, do condado de Montserrado;
os Harmon e os Horace, do condado de Grand Bassa; os Birch, os Greene, os
Grigsby, os Ross e os Witherspoon, do condado de Sinoe; os Brewer, os Dossen,
os Gibson, os Tubman e os Yancy, do condado de Maryland; todos formavam a elite
política (e sempre, invariavelmente, a elite econômica). No entanto, a unidade
nacional estava minada por graves divisões sociais. Existiam dois partidos
políticos desde 1847, data da independência: o Partido Republicano, dominado
pelos colonos mulatos, e o Partido dos True Whigs, dominado pelos colonos
negros, congoleses e autóctones instruídos. Não havia diferenças fundamentais
entre eles, tanto no plano ideológico como no político. Ambos se enfrentavam de
dois em dois anos, por ocasião das eleições, em ásperas disputas tanto mais
estéreis quanto é certo que eles não se opunham em nenhuma questão de fundo:
tratava‑ se era de conquistar o poder, para se apoderar de todo o
sistema de clientela da República. Os republicanos dirigiram a Libéria desde a
independência até 1870, ano em que foram derrotados pelos True Whigs. Voltaram
ao poder em 1871, que lhes escapou de novo em 1877.
Os True Whigs governaram então o
país sem interrupção até 1980, quando um golpe de Estado desfechado pelo
sargento‑chefe (hoje general) Samuel Doe os derrubou. A divisão era
bem mais profunda entre os américo‑liberianos e os africanos autóctones.
Durante todo o século XIX, a política dos américo‑liberianos
tinha como objetivo a assimilação cultural e política dos autóctones, tratando
de “civilizá‑los”, convertê‑los ao
cristianismo e dar‑lhes direitos idênticos aos dos colonos. Em certa medida,
tiveram êxito na assimilação dos recapturados (escravos libertos), bem menos
numerosos que os colonos, mas, ciosos de seus privilégios, não deixaram de
exercer um rígido controle político sobre a Libéria, limitando a participação dos
autóctones, mesmo os instruídos, nos negócios públicos. Pouquíssimos entre os
autóctones instruídos obtiveram o direito de voto, em pé de igualdade com os américo‑liberianos,
mesmo sendo estes pobres e analfabetos. Os representantes dos autóctones
(representantes, principalmente, dos africanos da costa) com cadeiras no Parlamento
de 1875 em diante eram principalmente chefes designados “juízes” (ou “delegados”).
Suas circunscrições, para que fossem delegados, tinham de pagar ao governo uma
taxa (delega te fee) de 100 dólares. Como os delegados só falavam por meio de
um intérprete sobre questões étnicas e não tinham direito de voto, sua
influência sobre a política do governo era muito reduzida8. Por isso africanos
instruídos e chefes viviam descontentes com a sua limitada participação na vida
pública. Por outro lado, o governo procurava aumentar ao máximo o que
constituía suas principais fontes de renda: os direitos de importação e
exportação e outras taxas sobre o comércio e o transporte marítimo. Para
facilitar a arrecadação e o controle do comércio externo pelos comerciantes
américo‑liberianos, o governo vedou aos estrangeiros, em 1839, o
comércio na Libéria fora de seis portos de desembarque américo‑liberianos.
As limitações e os impostos provocaram descontentamento nos negociantes
estrangeiros e nos chefes africanos autóctones, que, até então, controlavam o
comércio externo e recebiam os direitos aduaneiros. Uns e outros se aliaram
muitas vezes para lutar contra as medidas do governo ou para solicitar aos
Estados europeus que interviessem a seu favor. Foi assim que, por várias vezes,
no decurso do século XIX, os Vai, os Kru e os Grebo, da costa da Libéria,
pegaram em armas e se revoltaram contra os impostos que o governo queria
receber sobre o seu comércio
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