O progresso não cura Para certos monges que andaram pelo sul do Brasil, a modernização e o capitalismo eram indícios do fim dos tempos Tarcísio Motta de Carvalho Três personagens marcaram profundamente os que enfrentaram as tropas da República na Guerra do Contestado (conflito ocorrido entre 1912 e 1916 na região serrana de Santa Catarina, envolvendo, de um lado, caboclos expulsos de suas terras, e de outro, o Exército nacional). Os monges João Maria de Agostinho, João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho percorriam os sertões do sul do Brasil desde o século XIX.
Vindo da Itália para o Brasil em 1844, João Maria de Agostinho logo fixou residência em Sorocaba, no interior de São Paulo. Anos mais tarde, passou pelo Rio Grande do Sul, por Santa Catarina e pelo Paraná realizando curas valendo-se de fontes de água que o povo acabaria considerando santificadas. Adquiriu enorme fama entre a população que vivia próxima ao caminho das tropas, permanecendo na Região Sul até pelo menos 1870. Levava uma vida humilde e ascética, fazendo penitências, dirigindo orações e receitando ervas.
Entre 1895 e 1908, um segundo monge percorreria a mesma região. Como Agostinho, João Maria de Jesus logo ficou conhecido por causa de suas curas. Costumava conversar com as pessoas, indicava medicamentos, batizava as crianças e transmitia seus mandamentos, como, por exemplo: “Quem descasca a cintura das árvores para secá-las também vai encurtando sua vida. A árvore é quase bicho, e bicho é quase gente.” Ou ainda: “Quem não sabe ler o livro da natureza é analfabeto de Deus”.
Durante a Revolução Federalista (1893-1895), João Maria visitava acampamentos dos revoltosos e fazia críticas à República, anunciando calamidades e sofrimentos. Angelo Dourado, médico e coronel federalista, registrou um encontro com o monge, ocorrido em 1894:
“Quando proclamaram a república, ele anunciara por onde passara grandes calamidades e para preservarem-se dela plantassem cruzes nas portas. Que haviam de matar e roubar, porque todos estes teriam em si o diabo. Depois esses crimes trariam uma guerra cruel, sem quartel. Que animados pelo diabo teriam forças e dinheiro, mas que os outros venceriam mesmo sem armas”.
Ainda de acordo com São João Maria, esta nova guerra seria precedida de muitos “castigos de Deus”, como praga de gafanhotos, cobras ou chagas: “Vai vir um tempo onde haverá muito pasto, mas pouco rastro”.
Um terceiro peregrino chegou à região de Campos Novos, Santa Catarina, em 1912. Miguel Lucena de Boaventura, um curador de ervas, autodenominado José Maria de Santo Agostinho, atraiu centenas de pessoas, que permaneceram ao seu redor na localidade conhecida como Taquaruçu. Lá ele abriu uma espécie de consultório, chamado “Farmácia do Povo”, utilizando as diferentes ervas da região e elaborando receitas, como esta citada pelo jornal Diário da Tarde em 1912: “entravam sassafraz, raiz de xaxim e outras raízes, na proporção de 700 gramas em uma garrafa de cachaça, para os doentes ingerirem em grandes doses”.
Perseguidos pelas tropas catarinenses, José Maria e seus seguidores fugiram para o sertão do Irani, onde, em setembro de 1912, entraram em conflito com a polícia paranaense, dando início à Guerra do Contestado. A espera pelo retorno do curador – que morrera no conflito – e a tentativa de pôr em prática os ensinamentos dos monges, que foram preservados graças à tradição oral dos “caboclos” – como eram conhecidos os posseiros e sitiantes da região –, tornaram-se marcas fundamentais dos redutos rebeldes durante toda a guerra.
Os ensinamentos desses peregrinos foram incorporados pela cultura cabocla e deram base à resistência ao projeto modernizador e capitalista que procurava se impor na região serrana de Santa Catarina. A propriedade privada da terra, o aproveitamento industrial da floresta e as restrições de acesso aos ervais nativos nada tinham a ver com a preservação da natureza, a lealdade nas relações sociais e o amor aos animais, valores pregados pelos monges e incorporados pelos caboclos. O avanço do trem de ferro, das serrarias e dos projetos de colonização confirmava as profecias dos monges de que o tempo de calamidades e guerras havia chegado. Mas, para os caboclos, esse tempo era também a possibilidade da remissão dos pecados e da instauração de uma nova ordem – a santa irmandade – oposta à modernidade capitalista. Os milhares de mortos da Guerra do Contestado são a prova de que os ensinamentos e as profecias dos monges tinham uma força muito grande, e que, para os seus seguidores, a história deveria ter seguido por outros caminhos.
Tarcísio Motta de Carvalho é professor do Colégio Pedro II e autor de “Nós não tem direito – Costume e direito à terra no Contestado”. In: ESPIG, Marcia Janete & MACHADO, Paulo Pinheiro. Guerra Santa Revisitada: novos estudos sobre o movimento do Contestado (UFSC, 2008).
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