A configuração da ordem econômica internacional no primeiro quarto de século depois da Segunda Guerra Mundial não pode ser bem entendida sem dois pontos de balisamento, a complexa e prolongada crise dos anos 1919-1939 (uma sucessão de crises que surgem de um mesmo processo), e o papel único dos Estados Unidos, que se haviam tornado, depois da Primeira Guerra, a mais poderosa economia e a maior credora internacional e, em 1946, detinha mais de metade do PIB do mundo. Por essas circunstâncias únicas, passaram a ser o centro de convergência do pensamento econômico, e o grande laboratório onde as novas idéias seriam testadas. Os três mais fortes condicionantes das concepções econômicas dominantes no final da Guerra foram a debilidade da ordem internacional no período de entre-guerras, o problema da dívida internacional, tornado insolúvel pela brutalidade das reparações impostas à Alemanha (por pressão da França e da Grã Bretanha), e o traumatismo da grande Depressão dos anos 30. Na realidade, foram feitos, sobretudo entre 1919 e 1933, consideráveis esforços para estabelecer uma base de cooperação econômica entre os países (perto de 30 conferências ou reuniões internacionais ou intergovernamentais importantes foram levadas a cabo nesse período). Mas não foi possível vencer as rivalidades entre os Estados Nacionais, e o espaço político viu-se
fragmentado em uma série de soberanias divididas em conflitos de várias ordens, tão sérios que não haveria grande exagero em dizer-se que estavam empenhados num jogo de soma-zero generalizado. Não facilitou as coisas a Liga das Nações, estimulada inicialmente pelos Estados Unidos, haver sido privada (por doença) da colaboração individual do Presidente Wilson e, pela oposição política interna, este país não ter participado do organismo. A Depressão, o mais violento desastre econômico de que o mundo tem memória, foi precipitada (ou, pelo menos, muito agravada) por uma série de erros de política econômica. Embora, então, não se dispusesse ainda dos instrumentos teóricos que seriam sintetizados por J.M. Keynes em 1936, muitos tinham consciência de que o espaço econômico não podia ser reduzido pela compartimentalização do político, e que as guerras de tarifas e de câmbio haviam sido muito negativas para todos. A propósito de Keynes, seria o caso de recordarmos que, demitindo-se, desgostoso, da Delegação
britânica à Conferência de Versailles, escreveu um livro profético sobre as consequências econômicas das reparações de guerra (que, se pagas, seriam mais devastadoras do que se não houvessem sido estipuladas). Essa memória dos erros de entre-guerras (que ninguém podia duvidar haverem sido o catalizador da Segunda Guerra) explica os esforços para a criação de um sistema de cooperação internacional robustamente institucionalizado, dotado não apenas de mecanismos de ação política que os Aliados, vencedores, julgavam adequado (Assembléia Geral e Conselho de Segurança) e de agências especializadas, entre as quais um órgão supostamente capaz de garantir a liquidez do sistema internacional, o Fundo
Monetário Internacional, e um Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento, o BIRD, atualmente dito Banco Mundial. Outra agência especializada, a FAO (Organização para a Alimentação e a Alimentação), que se esperava tivesse um papel importante (porque havia consciência de que a recessão agrícola havia contribuido bastante para a Depressão, e porque, depois da Guerra, havia urgente necessidade de se aumentar a produção de alimentos e matérias primas) foi útil, mas não teve alcance significativo extra-setorial. Uma organização das Nações Unidas para o comércio internacional, objeto da Conferência de Havana de 1947, não chegou, porém, a concretizar-se, também por resistência do Congresso norteamericano. Embora num plano modesto, fui protagonista nesse período formativo, tanto em Bretton Woods, em 1944, como em Havana, 3 anos mais tarde. Um tanto melancolicamente, fui festejado, no cincoentenário da Conferência de Bretton Woods, como um dos "sete sobreviventes", algo que soa um pouco como título de filme, mas não contribui para que me sinta feliz ao olhar para trás. Reconheço, porém, que foi uma importante experiência - meio século, com efeito, de participação próxima, como economista ou como diplomata, no processo de transformações econômicas que, ainda hoje, não se esgotaram. Experiência privilegiada, porque pude acompanhar as inovações e o esgotamento de formulações teóricas e de políticas econômicas empíricas, que se sucederam ao longo desse tempo. Bretton Woods seria, aliás, a última das grandes peças da engenharia econômica montada durante a guerra. Daí por diante, restaria a implementação executiva. O Banco Mundial instalou-se em 27 de dezembro de 1945, e o FMI em 1º de março de 1947. Quando se realizou a Conferência de Bretton Woods - um sonolento vilarejo nas montanhas de New Hampshire, onde o trabalho seria a única distração possível - a teoria econômica estava ainda em certo estado de fluxo, embora as idéias de Keynes já mostrassem uma perceptível hegemonia. O grande medo era uma nova depressão, com suas consequências de desemprego em massa. Os Estados Unidos haviam sofrido
muito nos anos 30-33, chegando a 25% de desocupação da força de trabalho, quase tanto quanto na Alemanha, e a situação se tornou tão grave que chegou a surgir o fantasma de uma comoção social. O Presidente Roosevelt (que possuia um surpreendente "flair" para as relações públicas) apresentou o seu New Deal, um programa amplo de gastos públicos. Já se conhecia empiricamente o papel da expansão dos gastos públicos no combate às crises recessivas, e algumas contribuições da "escola sueca" da análise dita "ex ante, ex-post" permitiriam construir algumas explicações teóricas para o processo. Mas o papel da moeda (como depois mostraria Keynes) não havia recebido a necessária atenção do pensamento "neoclássico" então dominante, e havia dúvidas, entre as quais qual a eficácia dessas medidas em uma economia individual inserida num contexto externo muito mais amplo. Gastos públicos deficitários já estavam sendo experimentados com êxito pelo recentemente empossado governo nacional-socialista, na Alemanha. Mas Roosevelt, pessoalmente, tinha um conservadorismo inato, que o fazia recear desequilíbrios orçamentários. Assim, experimentou, com êxito limitado, e contra fortes resistências políticas internas, o financiamento deficitário do New Deal (bastante moderado no seu alcance, embora parecendo "revolucionário"), com algum êxito, retornou a uma política fiscal restritiva, enfrentando nova e séria recaida recessiva em 1937-38. O esforço de guerra obrigaria o governo a gastar em grande escala, com a interessante consequência de que o PNB americano praticamente dobraria durante a guerra. Keynes teve, nos Estados Unidos, um notável divulgador na pessoa de A. Hansen, de Harvard, economista de méritos próprios, autor de importantes trabalhos sobre a tese da estagnação secular das economias "maduras", e grande expositor, que justificou uma política compensatória fiscal permanente, com elevação dos gastos em assistência social e obras públicas, e a tributação progressiva sobre o imposto de renda. Um dos livros mais influentes desses anos foi uma coletânea de ensáios de economistas de Harvard e de Tufts, entitulada "An economic program for the American democracy". A idéia da estagnação secular não era nova (já estava, em semente, nos últimos grandes clássicos ingleses, ainda na primeira metade do Séc. XIX, e repercutiria em Marx), mas havia ganho atualidade com a terrível crise dos anos 30. Hansen desenvolveu o enfoque novo de que a economia americana poderia escapar a esse proceso se o funcionamento automático do investimento privado fosse complementado com políticas destinadas a assegurar o pleno uso dos recursos produtivos do Estado. O folheto de Hansen "After the War", publicado em janeiro de 1942, representou o ápice da absorção do pensamento keynesiano pelos "liberais" americanos: recomendava planejamento, tributação redistributiva, dispêndio público compensatório e cooperação entre o governo e a empresa privada, numa economia mista, para "vitalizar" e revigorar a iniciativa privada - o que National Planning Resources Board, "think tank" dos keynesianos e intervencionistas de diversos matizes, chamava de "sistema modificado de livre empresa". As vozes tradicionais do empresariado americano continuavam a opor-se ao "Big Government", mas a experiência recessiva dos primeiros anos depois da Primeira Guerra, assim que se esgotou o estímulo da "reconversão" à economia de paz, ainda estava muito viva na lembrança, e a maioria do público temia uma recidiva muito mais séria ao fim da Segunda Guerra. A reação a esse temor tomou a forma do Employment Act de 1946, que atribuia ao governo americano a responsabilidade de "providenciar o nível de gastos e investimentos federais necessários para atingir sustentadamente o pleno emprego", segundo a sua formulação keynesiana impecável. Quando se reuniu a Conferência de Bretton Woods, em 1 a 22 de julho de 1944, as posições doutrinárias ainda não estavam tão claramente definidas. O fim da Guerra estaria próximo, ninguém duvidava, mas os fantasmas de 1919-1933 não haviam sido de todo exorcizados. Participaram 44 países. A Delegação brasileira era presidida pelo Ministro da Fazenda A. de Souza Costa e contava, além de figuras de projeção no mundo econômico (Francisco Alves dos Santos Filho, diretor de câmbio do Banco do Brasil, Valentim Bouças, do Conselho de Economia e Finanças, e Victor A. Bastian, diretor do Banco da Província do Rio Grande do Sul), com Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões, dois espíritos extraordinários, a que o pensamento econômico moderno brasileiro muito deveria. A Delegação americana, compreensivelmente, a mais numerosa, era presidida pelo Secretário do Tesouro Henri Morgenthau, e reunia uma pleiade de nomes brilhantes: Dean Acheson, Secretário de Estado Assistente, mais tarde Secretário, na Administração Truman; Henri Dexter White, o autor do plano alternativo ao que seria apresentado por Keynes; Edward M. Bernstein, do Departamento do Tesouro; Alvin Hansen, o economista keynesiano; James W. Amgell, um dos grandes peritos em comércio internacional. Pela Liga das Nações figurava, entre os observadores, o célebre economista sueco Ragnar Nurkse; e no secretariado da Conferência estavam outros economistas conhecidos, Arthur Smithies, do Bureau of the Budget, e Raymond Mikesell, do Tesouro americano. Mas a mais brilhante das delegações foi, sem dúvida, a britânica, presidida pelo próprio Lord Keynes, que tinha a colaboração de dois especialistas eminentes, Denis Robertson, e Lionel Robbins ("neoclássico", autor da mais famosa definição de economia: a ciência de usar meios escassos entre fins alternativos). Keynes, incontestavelmente, era a grande estrela. Já antes da "Teoria Geral", o famoso livro que condensou as suas idéias, em 1936, havia se notabilizado por previsões de notável acuidade. Em 1919, tendo abandonado, desgotoso, a Delegação britânica à Conferência de Versailles, escreveu o livro "The economic consequences of peace", que antevia os desastrosos efeitos das brutais reparações impostas à Alemanha, e em 1925, no polêmico texto "The economic consequences of Mr. Churchill", predisse corretamente que o retorno do esterlino à paridade ouro, em taxa excessivamente alta, tornaria a Inglaterra não competitiva e provocaria a recessão. A Conferência de Bretton Woods fora precedida de uma reunião preparatória de peritos, em Savannah, na Georgia, à qual compareceu Bulhões, na qual foi efetivamente decidida a grande batalha (na realidade, iniciada nas discussões do Acordo de Lend-Lease - decisivo para o financiamento do esforço de guerra britânico - nas quais Keynes e White haviam sido interlocutores) entre os dois conceitos conflitantes – o Plano Keynes, inglês, e o Plano White, americano. O Plano Keynes, que refletia os interesses da Grã Bretanha, que não tinha mais condições de garantir a conversibilidade da libra esterlina, e previa, no apósguerra, um longo período deficitário no balanço de pagamentos, propunha, entre outros pontos, a criação de uma moeda internacional, o Bancor. O Plano White, que obviamente estava voltado para a percepção que os americanos tinham de seus interesses, implicava, de fato, a criação de um dollar exchange standard, mais flexível do que o padrão-ouro de pré-guerra. De Savannah emergiu o documento básico de trabalho de Bretton Woods, que se entitulava "Joint statement of the technical experts on the establishment of an International Monetary Fund". A Grã Bretanha estava conformada com a perspectiva de ser, por muito tempo, uma nação devedora. Todos os seus ativos, investimentos e reservas, haviam sido em grande parte liquidados no esforço de guerra. Keynes pretendia, por isso, evitar a excessiva concentração de recursos nas mãos dos países credores,
notadamente dos Estados Unidos, cuja posição era, então, absolutamente dominante, tanto no comércio internacional quanto nas reservas ouro. Previa, assim, algo semelhante a um banco central internacional – a International Clearing Union - com autoridade para emitir a moeda internacional (o Bancor), na qual seriam compulsóriamente convertidas as reservas de todos os países e depositadas no organismo central, a partir do que poderiam ser usadas para uma redistribuição da liquidez. Ao ver de Keynes, saldos persistentes de balanço de pagamentos eram tão perigosos quanto os deficits crônicos, de modo que julgava necessário gerar alguma compulsão para que os detentores daqueles saldos abrissem mão de sua liquidez para financiar as importações dos países deficitários. Quase cincoenta anos depois, o grande problema da Grã Bretanha em relação ao projeto da Europa unificada do Tratado de Maastricht é a relutância em abrir mão da própria moeda em favor da moeda européia única, no contexto da união monetária planejada para ser estabelecida em etapas, começando em 1994 e terminando com a adoção generalizada da "ECU" em 1999. Aos Estados Unidos, então no seu instante de máxima hegemonia econômica (para não falarmos na militar) não poderia interessar muito semelhante automatismo. Havia-se tornado um país credor na Primeira Guerra, e a "sabedoria aceita" ao tempo de Bretton Woods supunha a persistência de um dollar gap por prazo indefinido, tendo em vista o enorme hiato de produtividade então existente entre a economia americana e a do resto do mundo. Dessa forma, sua idéia do papel do Fundo Monetário Internacional era muito mais limitada do que a de um banco central, confinando-se suas funções à correção de desequilíbrios temporários do balanço de pagamentos. O sistema, como dissemos, seria o de um dollar exchange standard, porque a moeda americana manteria sua paridade com o ouro, fixada em 1934 em $35.00 por onça troy, e somente alterada em 1971, quando o país, tendo preferido financiar inflacionariamente a campanha do Vietnam, viu tornarem-se insolúveis suas dificuldades de balanço de pagamentos (que, na realidade, haviam começado no final da década de 50). Os países membros não converteriam sua moeda em Bancor. Depositariam ouro e moeda nacional no FMI. As quotas seriam sacáveis contra moeda nacional, sendo que a primeira "tranche" de 25%, correspondente à parcela ouro, seria sacável a qualquer momento independentemente de condicionalidade. A segunda "tranche" de 25% exigiria a prestação de informações ao Fundo. A partir da terceira "tranche", interviria a condicionalidade, segundo acordo entre o país sacador e o Fundo, visando à
execução de programas de reequilíbrio do balanço de pagamentos. Na Conferência de Bretton foram estabelecidas duas grandes comissões temáticas, uma, presidida por White, sobre o sistema financeiro internacional, e outra, sob Lord Keynes, relativa à criação do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento. Uma terceira comissão, menos importante, sobre "Outros meios de cooperação financeira internacional", foi presidida por E. Suarez, Ministro da Fazenda do México. O Ministro da Fazenda do Brasil presidiu, por sua vez, o Comitê 3 da Primeira Comissão, entitulada de "Organização e Métodos". Ao longo dos anos, houve várias flexibilizações nos estatutos do Fundo. A mais importante, provavelmente, deu-se em 1967, na reunião da Assembléia dos Governadores do FMI e do BIRD, no Rio de Janeiro, com a criação dos "Direitos Especiais de Saque", ou seja, uma quota suplementar distribuida aos diferentes países.
Os países em desenvolvimento exerciam forte pressão para dar aos "Direitos Especiais de Saque" requisitos de condicionalidade mais frouxos, facilitando fluxos adicionais para o desenvolvimento econômico. Tal flexibilidade proviria do fato de que, ao contrário dos programas de ajuda externa, que requerem a aprovação legislativa dos parlamentos dos países doadores, os "Direitos Especiais de Saque" dispensavam tal formalidade, pois fariam parte das facilidades previstas nos próprios estatutos do Fundo. Os países desenvolvidos, no entanto, alegando possíveis pressões inflacionárias, nunca consentiram na ativação direta desse mecanismo para fins de desenvolvimento econômico, que contrariariam, a seu ver, os objetivos próprios do Fundo e entrariam no terreno reservado, em tese, para o Banco Mundial. A propósito, conviria lembrar aquí o espantoso ridículo internacional em que a combinação de radicalismo político de esquerda e de protozoária ignorância fez cair o Brasil. Até hoje é possível ouvir palavras de ordem contra o "imperialismo" do FMI, contra a "ingerência" desse organismo na soberania do país. O FMI não passa de um organismo financeiro do qual o Brasil é quotista e membro fundador. Não se mete na vida interna de país algum. As exigências de "condicionalidade" surgem apenas (como seria o caso em qualquer banco) quando algum país em dificuldades de pagamentos vai pedir dinheiro emprestado. Tem havido alguma discussão internacional séria sobre os critérios do FMI, e alguns acham (por outras razões, às quais
voltaremos mais adiante) que tanto este, quanto o Banco Mundial, talvez estejam perdendo a razão de ser. Os critérios do Fundo são relativamente conservadores, e talvez apresentem, de fato, certo viés recessivo. Mas dificilmente poderia ser de outra forma, uma vez que o Fundo tem a obrigação de garantir a solvência externa dos que recorrem a ele. Não é um governo mundial, com poderes sobre todos os possíveis campos de ação econômica, e certamente não pode ser um financiador a fundo perdido. A Delegação brasileira, sob instigação de mestre Gudin, apresentou uma proposta seminal, cuja não aceitação na época tornou desbalanceado o sistema monetário internacional, e explica parte do azedume que hoje cerca as confrontações entre países industrializados e produtores primários, no diálogo Norte-Sul. A argumentação desenvolvia-se em três pontos básicos. Primeiro, a errática flutuação dos preços dos produtos de base e a sua disparidade em relação aos preços das manufaturas fora a causa maior dos desequilíbrios no cenário internacional. Segundo, a melhoria das relações de troca, resultante da queda dos preços dos produtos primários, representava vantagem ilusória para os países industrializados, pois o declínio do poder de compra dos subdesenvolvidos induziria a redução de suas importações, e consequente desemprego nas indústrias exportadoras dos países industrializados. Terceiro, o sistema financeiro a ser criado em Bretton Woods ficaria desbalanceado se, paralelamente ao Banco Mundial, responsável por investimentos de longo prazo, e pelo Fundo Monetário, responsável pela disciplina de curto prazo, não se criasse uma organização
para minorar a instabilidade dos preços dos produtos de base, condição essencial quer para o desenvolvimento, quer para a viabilidade cambial dos produtores primários. A validade intelectual do argumento da proposta brasileira era reconhecida por Lord Keynes, de vez que o plano original do Tesouro Britânico previa também um esquema de controle de estoques de produtos de base. No texto inglês, esse esquema era apresentado sobretudo como um instrumento anti-cíclico, portanto de curto prazo, sem consideração específica do desenvolvimento. Em relação ao Banco Mundial, a grande batalha, em Bretton Woods, foi travada entre os países europeus e
os subdesenvolvidos (como por muito tempo se disse). Aqueles queriam que o Banco desse absoluta prioridade ao trabalho de reconstrução das zonas devastadas pela guerra, ao passo que os últimos argüiam que eram devastados pela pobreza, e que esta devastação não era menos cruel do que a causada pela guerra. Na prática, a solução acabou sendo facilitada por uma dessas voltas inesperadas da História. A União Soviética recusou-se a participar quer das atividades do Banco, quer das do Fundo, e pressionou de modo inibitório sobre os demais países do Bloco soviético. A reconstrução destes teve de ser financiada principalmente com recursos locais, beneficiando-se a União Soviética do confisco de bens e propriedades industriais da Alemanha ocupada. Por outro lado, grande parte do onus da reconstrução acabaria cabendo, não ao Banco, mas ao Plano Marshall, anunciado em 1947, no contexto da "Guerra Fria", que se iniciava com contornos ameaçadores. O Banco Mundial foi chefiado, a partir de 1947, por uma figura apagada, J. McCloy, advogado conservador de Wall Street, e em 1949, por outro conservador, E. Black. Estes conseguiram, no entanto, um resultado importante, estabelecer uma tradição de gestão financeira conservadora que facilitasse o acesso dos "bonds" do Banco no mercado financeiro de Nova York. Apesar da galáxia de talentos concentrada em Bretton Woods, sabe-se hoje, com o benefício da visão retrospectiva, que houve um fundamental erro de diagnóstico. A preocupação dos economistas em Bretton Woods, liderados por Lord Keynes, era evitar a guerra de moedas, as desvalorizações competitivas como as que havia ocorrido durante a depressão, e conter as tendências recessivas que se esperava viessem a aparecer assim que se completasse a reconversão da máquina bélica (também uma preocupação justificada pela experiência da Primeira Guerra). No entanto, precisamente o contrário aconteceu. No após-guerra, o problema foi o da sobrevalorização do câmbio, pois os países necessitados de importações procuravam manter taxas sobrevalorizadas que as barateassem. Na realidade, a mania da sobrevalorização cambial, em parte como instrumento errôneo de combate à inflação, foi muito mais a regra do que a exceção, na América Latina que por causa disso (em parte,obviamente) viu a sua participação no comércio gradualmente reduzida. Assim, empuxes inflacionários, ao contrário de movimentos recessivos, acabaram se tornando o pior problema do imediato após-guerra. E contra ele, apesar da sedutora simetria da teoria keynesiana, as técnicas de administração da demanda agregada não se comprovaram, na prática, suficientemente eficazes. Devemos ser parcimoniosos na atribuição de erros e responsabilidades. Hoje, com o benefício de meio século de retrospectiva, conseguimos ver algumas coisas mais claramente, mas não todas. Quando se deu reunião a Conferência de Bretton Woods, o mundo fazia exatamente 30 anos de desordem, conflitos e terríveis traumatismos, desde a Primeira Guerra. Pela violência e pela amplitude da escala, nada havia de parecido na
memória humana (embora, claro, em termos relativos, outros grandes pontos de inflexão da História possam ser alegados). Como fundo de cena ou, se se preferir, como paradigma oculto, dominava o horizonte a idéia de uma normalidade associada com o mundo anterior a 1914, com a suposição de que o livre funcionamento do mercado levaria naturalmente a um equiíbrio ótimo. As concepções de 1944, por conseguinte, eram sobretudo corretivas e defensivas, voltadas para evitar os erros e males que se supunha houvessem ocorrido nas três décadas anteriores. Essa ótica era, sem dúvida, em muitos pontos correta, e não seria razoável cobrarmos dos homens de Bretton Woods uma competência futurológica além de quaisquer outros mortais. A razoável taxa de acerto pode ser aferida pelo fato de que, por 27 anos - até a primeira desvalorização do dólar, em 1971 - o mundo viveu uma longa era de prosperidade (que alguns batizaram de "Pax Americana", por inspiração da "Pax Romana"). E, na realidade, os problemas do dólar de 1971-73 tiveram raízes internas, mais do que externas, particularmente os deficits interno e externo, a forma de financiamento dos gastos no Vietnam e o fato de que, em 1971, o dólar valia um terço do que valia 1934, desde quando a paridade do ouro se mantivera fixa. Por mais que muitos economistas, em especial os americanos, se referissem ao ouro com "essa relíquia bárbara", ele continuou a exercer grande atração num mundo em que a falta de disciplina interna dos governos provocava os mais desencontrados efeitos sobre as moedas. O sistema de Bretton Woods previa taxas cambiais em princípio fixas, cabendo aos governos gerir as variáveis macroeconômicas internas de modo a assegurar estabilidade externa e interna (e, como supunha relativamente fácil a teoria keynesiana, o pleno emprego). Como se sabe, Keynes concentrou-se deliberadamente nos fenômenos cíclicos e, embora tivesse pensado numa estabilidade de longo termo com a "eutanásia do rentista", não chegou a deter-se nos desequilíbrios estruturais. E estes, tanto na vertente dos persistentes deficits externos, quanto da insuficiência de poupança e do desemprego, revelaram-se questões difíceis. Vejamos, agora, a terceira perna do tripé, que demoraria quase meio século para ser definitivamente (espera-se) posta no lugar: o mecanismo institucional para tratar do comércio entre os países. A Conferência Internacional de Comércio e Emprego (aliás uma idéia antiga de Cordell Hull, que convencera o Presidente W. Wilson a incluí-la entre os "14 Princípios" para a paz mundial, ao fim da Primeira Guerra) realizou-se em Havana de novembro de 1947 a março de 1948. A sobreposição dos temas refletia a preocupação quase obssessiva, a que já aludimos, com a temida fase de desemprego elevado depois da reconversão da economia de guerra. Alguma conexão macroeconômica obviamente existia entre esses temas, mas não era muito razoável juntá-los, da mesma forma que o seria o tratamento conjunto dos problemas monetários e cambiais com os do emprego. Dela sairia a Carta de Havana, com a recomendação de criar-se uma Organização Mundial do Comércio. Os comitês que fiquei encarregado de assessorar eram sobremodo
interessantes: sobre subsídios à exportação e preferências tarifárias. O resultado final, no entanto, não corresponderia às expectativas. O Congresso americano recusou-se, em 1949, a ratificar a Carta de Havana, e a única parte que acabou por ser operacionalizada foi o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, o GATT, que havia sido formulado nas conferências preparatórias de Londres e Genebra, com as atribuições específicas previstas no Art. VI da Carta, a saber, as pertinentes ao comércio de produtos manufaturados, e devendo entrar em funcionamento em 1º de janeiro de 1948, com a assinatura de 23 países. A posição brasileira era a mesa que Gudin havia defendido em Bretton Woods: a organização de comércio deveria ter como uma de suas responsabilidades principais o problema da estabilização dos preços dos produtos primários, que estava na raiz das dificuldades de pagamentos dos produtores primários. Isso envolvia, entretanto, basicamente o problema da agricultura, setor que sempre provocou um protecionismo tenaz, que ainda nos dias de hoje, apesar de ter sido criada, afinal, ao termo da Rodada Uruguai (iniciada em 1986), 47 anos depois de Havana, a Organização Mundial do Comércio, continua a constituir uma dificuldade muito real. Esta organização, quando ratificada, substituirá o GATT, e regulamentará, também, as áreas de agricultura, serviços (inclusive propriedade intelectual) e investimentos. Além do problema das estabilização dos preços das commodities e da contenção de subsídios a exportações agrícolas, interessava ao Brasil eliminar, ou pelo menos reduzir substancialmente, as preferências britânicas para a Commonwealth, instauradas pelo Acordo de Ottawa de 1922, que representavam uma discriminação contra os produtos latinoamericanos. Desejava, também, restringir a criação de novas preferências discriminatórias, a não ser através de acordos regionais, visando à criação de uniões aduaneiras, ressalvados os direitos dos não-participantes de apelar para a OIT, caso os termos e condições por ela fixados não fossem obedecidos nos acordos regionais. A possibilidade de criação de novas preferências eram defendidas, naquela ocasião, sobretudo por países árabes e centroamericanas. Só mais tarde é que surgiriam na América do Sul propostas de zonas de livre comércio e integração regional (ALALC e Bloco Andino). No tema das preferências, nossos interesses concordavam com os dos Estados Unidos, que defendiam a tese do comércio multilateral e não-discriminatório. Mas a posição americana era um tanto ambivalente, pois, de um lado, objetava às preferências inglesas, por outro as usava como desculpa para dar tratamento preferencial a Cuba e às Filipinas. Perdemos a luta. O GATT acabou sendo um organismo preocupado essencialmente com tarifas de importação, obstáculo mais relevante sob o ponto de vista do comércio de manufaturas do que sob o do comércio de produtos agrícolas, porque o protecionismo agrícola tomava habitualmente a forma da imposição de quotas, exigências de importação ou concessão de subsídios, ou seja, de barreiras não tarifárias. A luta contra as preferências britânicas via-se, também, dificultada pelo fato de as outras potências coloniais, a França, a Bélgica, os Países Baixos e Portugal, apoiarem a idéia de preferências para as as ex-colônias. A Delegação brasileira, presidida pelo Ministro Ferreira Braga, do Itamaraty, contava com nomes que teriam projeção na vida econômica do páis: Aldo Franco, Rômulo de Almeida, Glycon de Paiva, Garrido Torres e Alexandre Kafka, entre outros. O depois Embaixador Hélio de Burgos Cabal, então assistente econômico no gabinete do Presidente Dutra, participou de algumas reuniões. Voltei ao campo do comércio exterior na IX Reunião das Partes Contratantes do GATT, em Genebra, 1954. Discutia-se, então, em benefício das ex-colônias africanas, asiáticas e caribenhas, um fundo de Estabilização dos preços de matérias primas (STABEX). Argumentei sem êxito que havia uma discriminação contra a América Latina e que os países que pretendessem fazê-lo deveriam compensar financeiramente os latinoamericanos prejudicados. As ex-metrópoles coloniais não eram muito impressionáveis com meros argumentos intelectuais. Não está em nosso escopo, aquí, analisar os organismos financeiros regionais, como o Banco Interamericano, nem a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (criada pela Assembléia Geral no fim da primeira metade dos anos 60), nem tampouco o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) e seus pseudópodos regionais, tais como a Comissão Econômica para a América Latina, CEPAL (que, aliás, esteve bastante ligada ao nosso período "desenvolvimentista" quando me coube formular e dirigir o Programa de Metas de Juscelino Kubitschek). Algumas palavras caberiam, entretanto, à luz da experiência destes 50 anos, quanto a certas ilusões dos países em desenvolvimento. Como regra, estes países tendem, por um vezo retórico não raro compulsivo, a querer transformar o mundo real por meio de processos parlamentares, reuniões, assembléias, votações. Há nisso um pouco da ilusão de um paralelismo entre a personalidade do indivíduo, e a abstrata personalidade jurídica do ente coletivo. No mundo concreto, no entanto, dominam os interesses que cada parte percebe como sendo os seus, de modo que decisões por votos de Estados de dimensões, economia e até características de civilização muito diferentes, têm sobretudo valor simbólico, como o timbre que marca negociações prévias, às vezes muito longas e difíceis.
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