Setembro Negro
Willian Shirer revela os bastidores do Munique e suas conseqüências para a Europa
Ao amanhecer do dia 28 de setembro, a quarta-feira sombria, uma atmosfera sinistra pesava sobre Berlim, Praga, Londres e Paris. A guerra parecia inevitável. O general Jodl (chefe do Estado-Maior das Forças Armadas) conta que Göring declarou naquela manhã: “Agora já não é possível evitar uma conflagração mundial. Durará talvez sete anos e será ganha por nós.”
Nesse mesmo dia, ás 11 horas, o telefone tocou em Berlim, no ministério das Relações Exteriores. Ciano chamava de Roma e queria falar com o ministro. Mas como Ribentrop estava na chancelaria do Reich, o ministro das Relações Exteriores italiano pediu que pusessem em comunicação com seu embaixador, Bernado Attolico. Os alemães continuaram á escuta e gravaram a conversa. Soube-se então que era Mussolini quem estava na linha: Mussolini – Aqui o Duce. Ouve-me bem?
Attolico – Sim, ouço-o.
Mussolini – Solicite audiência imediata ao chanceler de Hitler. Diga-lhe que o governo inglês me pediu, por intermédio de Lord Peth, que intervenha como mediador no assunto Sudetos. O ponto sobre o qual há desacordo é de pouca importância. Afirme ao chanceler que estamos ao seu lado, eu a Itália fascista. A ele é quem cabe a decisão. Mas diga-lhe que, na minha opinião, é preciso aceitar a proposta. Percebeu bem?
Attolico – Sim, percebi.
Mussolini – Vá, então. Depressa!
Arfando, congestionado (como observou o intérprete o Dr. Schimidt), Attolico chegou à chancelaria e soube que o embaixador da França, Fraçois-Poncet, estava em conferência com Hitler. A conversa foi interrompida as 14h40 para comunicar ao Führer que Attolico era portador de uma comunicação urgente de Mussolini. Hitler saiu da sala, acompanhado por Schimidt, para a receber.
Depois de cumprir sua missão, Attolico acrescentou que Mussolini pedia ao führer para não se mobilizar. Foi nesse momento – diz Schimdt, a única testemunha sobrevivente - que Hitler resolveu escolher a paz. Era meio-dia. Duas horas depois, o prazo concedido aos tchecos para responderem ao ultimato hitleriano teria expirado.
- Diga ao Duce – respondeu Hitler a Attolico – que aceito as suas propostas.
Foram enviados convites aos chefes de governo da França e da Itália pedindo que se encontrassem em Munique com o führer no dia seguinte, ao meio-dia, para resolver a questão tcheca. Aos tchecos nem sequer se sugeriu que assistissem à reunião, na qual deveria resolver sua condenação à morte.
Quando Chamberlain comunicou a notícia ao Parlamento, a Câmara dos Comuns reagiu com uma manifestação de alívio coletivo. Os deputados lançavam gritos clamorosos e muitos choravam. Jan Masaryk, o ministro tcheco, filho do fundador da República tchecoslovaca, assistia à cena da galeria dos diplomatas e não acreditava no que via. Depois, encontrou-se com o primeiro-ministro e o secretário de Relações Exteriores, para saber se seu país, destinado a sofrer todos os sacrifícios, seria convidado para Munique. Chamberlain e Halifax responderam que não. Masaryk olhou os dois ingleses e fez um tremendo esforço para se dominar.
- Se os senhores sacrificam meu país para salvar a paz do mundo – disse -, eu serei o primeiro a concordar convosco. Senão, que Deus tenha piedade das vossas almas!
No dia 29 de setembro, às 12h30, na cidade bávara de estilo barroco onde começara sua vida de homem político nos cafés miseráveis e onde conhecera o amargo da derrota quando fracassara o putsch da cervejaria, em 1923, Aldof Hitler recebeu como vencedor os chefes de governo da Grã-Bretanha, da França e da Itália.
Naquela manhã, o führer saíra ao encontro de Mussolini, em Kufstein, na antiga fronteira austro-alemã, para determinar as bases de uma ação comum na conferência. Chamberlain não tivera o mesmo cuidado de reunir-se com Daladier. Os jornalistas que, como eu, estavam em contato com as delegações britânica e francesa chegaram à conclusão de que Chamberlain tinha vindo a Munique disposto a que ninguém – nem os tchecos nem os franceses – o impedisse de concluir um acordo com Hitler.
As conversações, que começaram às 12h45, no edifício chamado Führerhaus, na Koenigsplatz, não se revestiram de nenhum caráter dramático e foram uma simples formalidade para entregar a Hitler tudo o que desejava. Quando Mussolini pediu a palavra, disse ter trazido uma proposta escrita para resolver o problema tcheco. Na verdade, o que o Duce fazia passar por um projeto seu fora redigido a toda pressa na véspera, em Berlim, no Ministério das Relações Exteriores. Göring levara o texto a Hitler, que o aprovara. Depois de traduzido para o francês pelo Dr. Schimidt, enviaram-no ao embaixador Attolico, que o transmitiu ao ditador italiano. Embora Hitler não quisesse nem ouvir falar de representantes tchecos na reunião, Chamberlain conseguiu que eles esperassem na sala ao lado. E assim foi feito. Logo que chegaram, Vojtech Mastny, ministro tcheco em Berlim, e Hubert Masaryk, ministro das Relações Exteriores de Praga, foram introduzidos, sem a menor cerimônia, num aposento contíguo.
Lá permaneceram desde as 14 horas. Às 19 horas receberam uma notícia brutal. Um funcionário inglês veio informá-los de que se conseguira um acordo “muitíssimo mais duro” do que as propostas franco-britânicas. Masaryk perguntou se os tchecos não poderiam ser ouvidos. A resposta foi não. Às 22 horas, os infelizes tchecos foram conduzidos à presença de sir Horace Wilson, conselheiro de Chamberlain. Wilson comunicou-lhes os principais pontos do acordo e entregou-lhes um mapa das zonas dos Sudetos que deveriam ser desocupadas. Quando os dois tentaram protestar, ele cortou-lhes a palavra.
- Se os senhores não aceitaram, serão obrigados a regular, sozinhos, seus negócios com os alemães. Talvez os franceses digam isso menos brutalmente. Mas, acreditem, eles têm os mesmos pontos de vista que nós. Desinteressam-se do problema.
Era verdade. No dia 30 de setembro, por volta de 1 hora da madrugada, Hitler, Chamberlain, Mussolini e Daladier assinaram o Acordo de Munique, estipulando que o Exército alemão entraria na Tchecoslováquia no dia 1º de outubro, como Hitler sempre havia dito, e marcando o termo da ocupação dos Sudetos até 10 de outubro.
Entre as recordações que conservei dessa noite, lembro-me da centelha de triunfo que brilhava nos olhos de Hitler enquanto descia, com os passos solenes, as escadarias do Führerhaus; do aspecto auto-suficiência de Mussolini, apertado no seu uniforme de milícia; e dos bocejos de Chamberlain. Naquela noite, escrevi: “Daladier parecia aniquilado. Dirigiu-se ao Regina Palace para se despedir de Chamberlain. Alguém lhe perguntou se ficaria satisfeito com o acordo. Ele se voltou para responder, mas estava tão cansado que as palavras lhe faltaram. Atravessou a porta em silêncio, num passo inseguro.”
No entando, tal como Daladier em Paris, tambem Chamberlain voltou a Londres como vencedor. O primeiro-ministro, radiante, viu-se em presença de uma multidão que se acotovelava em Downing Street. Depois de ter ouvido o povo gritar “Viva Neville!” e cantar for he’s a jolly good fellow, Chamberlain pronunciou algumas palavras do alto de uma janela do 2º andar.
- Meus queridos amigos – disse – pela segunda vez na nossa história, a paz, com honra, foi trazida da Alemanha para Downing Street. Julgo que, desta vez, é a paz para toda vida.
As conseqüências de Munique
Nos termos do Acordo de Munique, Hitler conseguia o que pedira, e a comissão internacional, inclinando-se diante de suas ameaças, concedeu-lhe mais. O acordo final do dia 20 de novembro de 1938 obrigava a Tchecoslováquia a ceder à Alemanha 28,6 mil quilômetros quadrados de território. Ali se situavam as importantes fortificações que constituíam, até então, a linha de defesa mais formidável da Europa, com exceção talvez, da Linha Maginot.
Poloneses e húngaros, depois de terem ameaçado recorrer à ação militar contra a nação reduzida à impotência, lançavam-se agora como abutres sobre a Tchecoslováquia para arrancar um pedaço de cerca de 1,7 mil quilômetros à volta de Teschen. A Hungria obteve um pedaço maior ainda: 19,5 mil quilômetros quadrados.
Por isso, nada admira que o general Jodl tivesse escrito, nessa mesma tarde da reunião de Munique: “Assinou-se o Acordo de Munique. Como potência, a Tchecoslováquia deixou de existir. O gênio do führer e a sua resolução de nunca recuar, mesmo diante da ameaça de uma guerra mundial, obtiveram uma vez mais a vitória, sem o recurso à força. Pode-se esperar que os incrédulos, os fracos e os indecisos estejam convertidos e que não mudem mais de opinião.”
Em grande número, os indecisos foram convertidos. Mas os outros, aliás em pequeno número, mergulharam no desespero. Alguns generais alemães, como Beck, Halder e Witzleben, e ainda os civis que os aconselhavam, não tinha tido razão uma vez mais. Hitler obtivera o que desejava e ainda acabara por alcançar uma grande vitória, sem disparar um tiro. Seu prestígio crescia. Quem quer que se encontrasse na Alemanha durante os dias que se seguiram a Munique, como foi o meu caso, não pode esquecer a embriaguez que se apoderou o povo alemão.
As pessoas sentiam alívio, porque a guerra fora evitada, e orgulho pela vitória, conseguida de forma pacífica por Hitler, não só sobre a Tchecoslováquia, como também sobre Grã-Bretanha e França. Seis meses haviam bastado a Hitler conquistar a Áustria e os Sudetos. Ele concebera e utilizava com êxito uma estratégia e uma tática novas de guerra política que tornava inútil a guerra verdadeira. Em menos de quatro anos e meio, esse homem de origem modesta fizera de uma Alemanha desarmada, caótica e à beira da falência a nação mais poderosa do Velho Mundo.
Só Wiston Churchill, na Inglaterra, pareceu compreender a gravidade da situação. Ninguém expôs as conseqüências de Munique com precisão de seu discurso de 5 de outubro, na Câmara dos Comuns: “Sofremos uma derrota total e absoluta. Estamos no seio de uma catástrofe de amplitude incomparável. O caminho das embocaduras do Danúbio, o caminho do Mar Negro está aberto. Um atrás do outro, todos os países da Europa Central se verão arrastados pela vasta torrente da política nazista. E não pensem que isso é o fim. Isso não é mais do que o princípio.” Mas Churchill não fazia então parte do governo e suas palavras não foram ouvidas. A abdicação anglo-francesa em Munique era necessária? A atitude de Hitler não teria sido um blefe?
Por mais paradoxal que possa parecer, a resposta é não para as duas perguntas. Todos os generais que rodeavam Hitler e sobreviveram à guerra concordam que, se o Acordo de Munique não houvesse sido assinado, Hitler atacaria a Tchecoslováquia em 1º de outubro de 1938. Eles supõem que, mesmo se Grã-Bretanha, França e Rússia tivessem manifestado em princípio alguma hesitação, terminariam arrastadas para a guerra. E dizem mais: que a Alemanha, nesse caso, perderia a guerra em prazo muito-curto.
O general Gamelin, chefe do Estado-Maior francês, apesar de sua extraordinária prudência, não tinha menor dúvida sobre o resultado de uma eventual campanha. Em 12 de setembro, dia em que Hitler, na sessão de encerramento do Congresso de Nuremberg, lançava violentas ameaças à Tchecoslováquia, o general assegurava a Daladier, que, se eclodisse a guerra, “as nações democráticas ditariam as condições de paz.”
Gamelin apoiou essa declaração com uma carta em que explicava as razões de seu otimismo. Em 26 de setembro, no apogeu da crise tcheca, ele havia acompanhado a Londres o dois ministros franceses, e, ao renovar suas opiniões a Chamberlain, tratara de justificá-lo por meio de uma análise da situação militar, destinada a fortificar a energia, não só do primeiro-ministro britânico, mas também do premiê francês, que se mostrava irresoluto.
Fracassou em sua tentativa. Finalmente, no momento em que Daladier ia apanhar o avião para Munique, Gamelin fixou os limites das concessões territoriais que poderiam ser feitas no Sudetos sem pôr em perigo a segurança da França o acesso à passagem da Morávia.
Excelentes conselhos, se o que se queria era que a Tchecoslováquia fosse alguma utilidade à França no caso de uma guerra contra a Alemanha. Mas já vimos que Daladier não era homem que aceitasse conselhos.
Na época de Munique falou-se muito de capitulação de Chamberlain se explicava, em parte, pelo temor de ver Londres destruída pelas bombas alemãs - e não há dúvida de que os franceses pensavam da mesma forma sobre sua magnífica capital. Segundo informações sobre a verdadeira potência da Luftwaffe naquela época, londrinos e parisienses alarmaram-se sem motivo. Do mesmo modo que o Exército, a Aviação alemã estava concentrada sobre a Tchecoslováquia, e os alemães não podiam efetuar operações importantes no oeste.
A resistência teimosa com que Chamberlain se empenhou em conceder ao führer tudo o que ele pedia tirou de Hitler o peso de uma eventual volta atrás, reforçando suas posição na Europa e na Alemanha, assim como sua autoridade sobre o Exército, muito mais do que se poderia imaginar algumas semanas antes.
Isso aumentou, igualmente, a força do III Reich em relação às democracias ocidentais e à União Soviética. Munique foi para França um desastre, e não se pode compreender a cegueira de seu governo. A posição militar francesa na Europa ficava reduzida a zero. O país só conseguiria reunir a metade dos efetivos do Reich. Além disso, produzia menos armamentos. Por isso, edificara um sistema de alianças com as pequenas potências do leste, no outro flanco da Alemanha e da Itália. Tchecoslováquia, Polônia, Iugoslávia e Romênia, reunidas, possuíam a capacidade bélica de uma grande potência. A perda de 35 divisões tchecas, bem treinadas e armadas, atuando por trás das montanhas e capazes de imobilizar as forças alemãs, deixava muito debilitado o Exército francês.
Mas isso não era tudo. Depois de Munique, os aliados que a França conservava na Europa Oriental poderiam começar a se perguntar qual o valor de uma aliança com Paris. Compreendendo que esse valor era muito pequeno, Varsóvia, Bucareste e Belgrado apressaram-se em assinar acordos com os nazistas. Em Moscou, o clima também era tenso. Apesar de a União Soviética ter assinado uma aliança militar com a Tchecoslováquia e França, o governo francês aceitara sem protestar a opinião de Alemanha e Grã-Bretanha, excluindo a Rússia das conversações de Munique. Afronta que Stálin nunca esqueceu e que custaria caro às democracias nos meses futuros.
Em 3 de outubro, quatro dias depois de Munique, o conselheiro da embaixada alemã em Moscou, Werner Von Tippelskirch, enviou informações a Berlim sobre as conseqüências do acordo para política soviética. Acreditava que Stálin tiraria conclusões, mostrando-se menos amistoso para com sua aliada França e mais positivo a respeito da Alemanha. Na realidade, opinava o diplomata alemão, “as circunstâncias atuais oferecem-nos uma ocasião favorável para assinar a União Soviética um novo acordo econômico de grande envergadura”. É a primeira vez que se encontra nos arquivos secretos alemães um indício de uma troca então apenas perceptível, mas que teria conseqüências importantíssimas um ano mais tarde.
Willian L. Shirer
WILLIAN L. SHIRER (1904-1993) trabalhou como jornalista em Berlim para o Columbia Broadcasting System, de 1937 a 1940, período em que pôde observar de perto o crescimento do nazismo. Publicou, entre outros, Ascensão e Queda do Terceiro Reich (1959), do qual foi tirado e condensado o texto acima.
Fonte deste artigo: Almanaque Abril 2005 60 anos da Segunda Guerra Mundial
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