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Discurso de posse do presidente Jânio Quadros


Discurso de posse do presidente Jânio Quadros




Brasília, 31 de janeiro de 1961.

Recebo, Senhor Presidente, neste instante, de vossas mãos, a faixa simbólica do governo de nossa Pátria.
Recebo-a com profunda emoção porque tenho consciência do verdadeiro sentido implícito na singeleza desta cerimônia. Não desconheço o que significa, em responsabilidade e sacrifício, ser o instrumento das afirmações e aspirações de todas as camadas da população. Não ignoro, nas atuais circunstâncias econômicas e sociais, o peso dessa delegação impostergável.
Aceito-a na medida do meu valimento pessoal, no que me permitirem as energias, e compartilhando-a sempre com os colaboradores do meu governo, darei a ela a melhor orientação e o melhor desempenho. Senhor Presidente, o governo de V.Exa., que ora se finda, terá marcado na história a sua passagem, principalmente porque através de sua meta política logrou consolidar, em termos definitivos no país, os princípios do regime democrático. Homem da oposição, desvalido dos recursos de prestígio, tradição e fortuna, animado tão-somente da vontade de servir a nação, eis-me, hoje, aqui, elevado ao posto mais alto da nossa hierarquia política. O processo do voto, sem atritos nem distorções, apontou-me como vitorioso das urnas.
E como vitorioso nas urnas, assumo agora a direção suprema do país. Creio, Senhor Presidente, no regime democrático. Creio no povo, humilde e laborioso. Creio na tradição da nossa liberdade. E porque creio na democracia, porque creio no povo, creio na liberdade, creio também no futuro da pátria, que só pode ser a soma do que somos, a colheita do que plantamos, a morada tranqüila que construímos, para nós e para a posteridade. Senhor Presidente Juscelino Kubitscheck, se a Divina Providência, na sua misericórdia, houver por bem me dar alento e saúde, aqui estarei, certamente, no final deste mandato, para transmitir, em cerimônia idêntica, ao sucessor que o povo me der, os símbolos da autoridade. Transitórios somos nós, os seus governantes. Transitórias e efêmeras, as nossas pobres divergências. Mas eternos hão de ser, na comunhão da pátria, o povo e a liberdade.

Discurso do presidente Jânio Quadros veiculado pela “Voz do Brasil”
Palácio da Alvorada, 31 de janeiro de 1961.
[COMUNICADO]
Rio de Janeiro, 1º de fevereiro de 1961.
Elevado à Presidência da República por inequívoca determinação do povo brasileiro, não posso e não quero iniciar o exercício deste mandato sem o agradecimento a esse voto de esperança. Nosso povo ativo e laborioso, eilo aqui diante de mim, espiritualmente presente, a testemunhar neste ato o triunfo dos seus anseios cívicos. Estou certo de que as mulheres e os
homens com quem me avistei e aos quais me dirigi durante a campanha no Norte e no ordeste, no Oeste, no Centro, no Leste e no Sul do país, têm suas atenções voltadas para este Distrito Federal, elevando suas preces ao Altíssimo, pelo êxito da administração que se inicia. Que Deus onipotente me ilumine e me resguarde na jornada. Como o afirmei em numerosas paragens do território da pátria, este será um governo rude e áspero; tais objetivos não têm sentido de ameaça, antes, exprimem a franqueza de quem não mente aos seus concidadãos, porque não foge ao seu dever nem abdica das suas convicções. Se não me faltar o arrimo da inspiração divina, se não me faltar o apoio das multidões, se não me faltar o apoio do legislativo e do Judiciário, sei de mim que resgatarei a palavra de fé empenhada nas praças. Somos um Estado democrático cujos fins se contêm no governo do povo, pelo povo e para o povo. O povo estará comigo e comigo governará. O povo será, a um tempo, a minha bússola e o meu destino. Investido na chefia do Executivo, julgo-me no dever de expor, para ciência
de todos, o estado atual da República. É indispensável que se conheçam na extensão e no vulto da sua inteira realidade os problemas cujo deslindamento me compete. É necessário que se saiba o que me entregam e as reais condições do que me entregam. Tenho por  imprescindível um severo arrolamento das questões que nos aguardam e que resultam não apenas do estágio de desenvolvimento que atingimos, mas também da carência de uma visão segura, ao mesmo tempo geral e específica, dos reclamos com freqüência contraditórios dessa coletividade. Ao termo do mandato, aceito que me julguem pelo que restar do cotejo entre o que recebo e o que por minha vez transmitirei. Não há ninguém pessoalmente na mira das prevenções que me atribuem, mas também não haverá ninguém, a começar dos mais altos escalões administrativos, que possa situar-se fora das normas de exação, compostura e integridade que caracterizarão os negócios públicos neste qüinqüênio. Candidato, não revidei; presidente, não tenho paixões a comprazer nem adversários a alcançar. Derrogarei até o limite
extremo das minhas forças a contrafacção do sistema político-administrativo que infelicitou a pátria em alternância de ações irresponsáveis e de emissões em confiança. No combate a essa adulteração, a essa corrupção que infecciona e debilita o regime, não darei quartel. A vassoura que o povo me confiou nas assembléias, trago-a comigo, para os serviços empreitados. Usá-la-ei em consonância com o que prometi e com o que me reclamam, mas em caráter da mais estreita imparcialidade. A estatística, todavia, demora infensa às frases da retórica e à graça dos ditirambos. Se conclusões inculca, é que estas se acham entranhadas no panorama que cumpre analisar. Será proveitoso, quando nada para os juízes da história, que cada qual tome do ônus comum o quinhão que lhe caiba. É terrível a situação financeira do Brasil. Nos últimos 5 anos, o meio circulante passou de 57 bilhões para 206 bilhões de cruzeiros. Faltam-me as cifras da aluvião de papel-moeda relativa ao primeiro mês deste ano. Não me causaria estranheza que a tabela complementar denunciasse fluxo ainda mais  incontinenti. Desenhadas em centenas de milhares, ao estrangeiro devemos 3 bilhões e 802 milhões de dólares, o que marca, só a este título e naquele período, a elevação de 1 bilhão e 435 milhões de dólares sobre o passivo anterior. E a situação é tanto mais séria quando se sabe que somente durante o meu governo deverei saldar compromissos em moeda estrangeira no total de cerca de 2 bilhões de dólares. E, só no corrente exercício, de 600 milhões de dólares. Importa assinalar que, além de compromissos pontuais, existem operações efetuadas pela Carteira de Câmbio a título de antecipação da Receita, num montante que sobe a 90 milhões de dólares. Tanto vale dizer que essa vultosa importância deverá ser deduzida da magra receita das nossas exportações em 1961. Destaque-se que a Carteira de Câmbio,
apesar de vir emitindo promessas de venda a 150 dias, não as liquida no prazo aventado, somente o efetuando com atrasos de um mês ou mais. De outra parte, causam intranqüilidade, pelo volume, os encargos aceitos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico com avais e empréstimos externos. Estes ascendem, em nome do Tesouro Nacional, a 11 bilhões e
200 milhões de cruzeiros e, em nome do próprio banco, a 23 bilhões e 400 milhões de cruzeiros, perfazendo as duas cifras o total de 34 bilhões e 600 milhões de cruzeiros. Destarte, embora se tome por base o preço artificial do câmbio do custo, 100 cruzeiros por dólar, os aludidos avais representam obrigação suplementar de 340 milhões de dólares. Internamente somamse a estes débitos astronômicos o montante do endividamento do Tesouro
junto ao Banco do Brasil, os “restos a pagar” acumulados de 1956 a 1960, e o aumento da dívida da nação aos institutos de previdência. Encaro sem otimismo as perspectivas do balanço de pagamento do país no futuro imediato. Os preços internacionais de quase todas as matérias-primas continuam baixando em virtude de a oferta mostrar-se superior à procura.
No que tange ao café, riqueza que cumpre defender a curto e a longo prazo, o que tem sido infelizmente deslembrado, as perspectivas entremostram-se [des]alentadoras. A 31 de janeiro de 1956, o preço médio do produto em centavos de dólar, por libra-peso, era de 47 cents. Na
data de hoje, o mencionado preço é de 33 cents. A diferença impôs à economia nacional perdas assustadoras de moedas fortes. Estima-se em cerca de 40 milhões de sacas o estoque do produto adquirido pelo governo e que se encontra às mãos do IBC. Careço ainda de informações estatísticas sobre as quantidades vendidas pelos particulares, contudo, só a armazenagem do café do IBC, cuja qualidade se discute, custa aos brasileiros mais de 200
milhões de cruzeiros por mês. Os déficits orçamentários, nos últimos dez anos, apavoram. Subiram eles, de 1951 a 1955, a 28 bilhões e 800 milhões de cruzeiros; alçaram-se, de 1956 a 1960, a 193 bilhões e 600 milhões de cruzeiros. O déficit em potencial, para o exercício de 1961 – o primeiro do meu governo – é de 108 bilhões de cruzeiros, que assim se decompõem: orçamento, 302 bilhões e 300 milhões de cruzeiros; créditos transferidos, 3 bilhões de ruzeiros; créditos a serem abertos, 30 bilhões de cruzeiros; liquidação de resíduos passivos, 15 bilhões de cruzeiros; outras despesas – Brasília – 10 bilhões de cruzeiros. Mesmo considerando que a receita do exercício, orçada em 246 bilhões e meio, pode atingir cerca de 262 bilhões, isto é, 19% acima da arrecadada em 1960, a nossa estimativa de déficit está plenamente justificada.
Os índices de elevação do custo de vida, nesses mesmo 10 anos, apurados pela Fundação Getúlio Vargas, correm parelha com as demais, conseqüências do surto inflacionário. Atribuindo-se o índice 100 para média de 1948, alcançamos, em 1955, o marco 259 e, em dezembro último, acima de 820. Os investimentos efetuados e os que estão em via de execução em Brasília montam a 72 bilhões e 600 milhões de cruzeiros. Apesar das rorrogações obtidas e da imprudência dos saques a descoberto, os pagamentos de nossas obrigações vencidas aos estrangeiros não puderam ser cumpridos nos prazos estabelecidos. Em novembro último, não dispúnhamos de 47 milhões e 700 mil dólares para cobrir ajustes
com o Fundo Monetário Internacional. Faltaram-nos, igualmente, recursos para quitar duas obrigações do Eximbank, uma de 8 milhões e 200 mil dólares, outra de 20 milhões e 100 mil dólares. Tomou-se apenas, singelamente, a providência de descarregar as faturas vencidas sobre a administração que ora se instala. No quadro que me é presente, resulta que devo pagar, entre 1961 e 1965, 1 bilhão, 853 milhões e 650 mil dólares de prestações, o que significa, fazendo-se a conversão do dólar à taxa do câmbio livre, na base de 200 cruzeiros, o dólar, 370 bilhões e 730 milhões de cruzeiros. Toca-me obter o numerário para repor o que os outros consumiram. E o total não envolve os empenhos atinentes à liquidação de promessas de venda de câmbio, à importação financiada de preços complementares, à amortização
da dívida de grupos e empresas privadas. O que se fez, acresço, o que logrou retumbantes repercussões publicitárias, cumpre agora saldar, amargamente, pacientemente, dólar a dólar,
cruzeiro a cruzeiro. Hoje, faz-se mister, nesta nação de fachada nova, mas de economia exangue, que esse povo, opresso pelo subdesenvolvimento, roído pela doença e pelo pauperismo, se despoje dos últimos níqueis para honrar dívidas postas no nome do Brasil.
De outra parte, as tabelas de enriquecimento da economia nacional, levantadas pelo valor da produção interna bruta, não explicam o comprometimento das finanças e da economia aqui posto sumariamente em relevo. Ao contrário, mostra que a pressão tributária, isto é, o vulto da sangria imposta ao povo nestes últimos anos, aumentou de 22% para 30%. Os dados são oficiais. Urge que o povo os conheça, fixe e decore. Sacrifícios serão inevitáveis, todos devemos consentir neles; senão, avançamos, futuro a dentro, conforme se sonhou com tão inocente ou malicioso ufanismo. Sacamos o futuro, contra o futuro, muito mais do que a imaginação ousa arriscar. O vencimento destes encargos bate às nossas portas. Vamos
esquematizar a solução deles, honestamente, corajosamente, certos de que não nos faltará a cooperação internacional. Poderá melindrar aos que não se atemorizam com o fato, embora se arrepiem face ao seu anúncio, que exponha, em oração a que a natureza da cerimônia confere repercussão internacional, o quadro deplorável das nossas finanças. Faço-o muito de indústria. Para os círculos bancários e econômicos, indígenas e estrangeiros, não é ele novo, antes, sobejamente conhecido. Ignora-o, apenas, a opinião nacional, mantida entre os vapores inebriantes de uma euforia quase leviana. Precisamos saber a quantas andamos, para determinar realisticamente e não ao sabor de róseos devaneios, para onde vamos e como
lá chegaremos. Tão grave quanto a crise econômica e financeira se me afigura a crise moral, administrativa e político-social em que mergulhamos. Vejo a administração emperrada pela burocracia e manietada por uma legislação obsoleta. Vejo as classes erguerem-se, uma a uma, contra a coletividade, coisas de vantagens particulares, esquecidas de que o patrimônio é de todos. Vejo, por toda a parte, escândalos de toda a natureza. Vejo o favoritismo, o filhotismo, o compadrio sugando a seiva da nação e obstando o caminho aos mais capazes. Na vida pública, mal se divisa a distinção entre o que é sagrado e o que é profano. Tudo se consente ao poderoso, nada se tolera ao sem fortuna. A previdência social, para a qual se recortou roupa nova, vem funcionando contra os trabalhadores. Dessas mazelas, várias não são – pobre conforto! – unicamente nossas. Nosso século está marcado pelos movimentos de massa, pelas reivindicações organizadas das categorias profissionais. O desenvolvimento burocrático, industrial, comercial, técnicocientífico, solidarizando-se entre si, vários grupos unidos por atividades semelhantes, sacudiu sucessivamente os braços da balança social ao peso de novas exigências sempre que um dos grupos se julgava preterido em relação aos outros. Há um século idealizou-se a sociedade perfeita, realizada, calma. Extinguir-se-iam os conflitos. Essa idealização, espancando os sonhos, ora românticos, ora líricos do século XVIII, tinha como premissa a possibilidade de previsões indefinidas do futuro da espécie, como se a
história não ensinasse que a vida do homem sobre a terra é marcada por luta permanente, que sempre se readapta às novas condições, em busca de justiça e liberdade. Grave, porém, foi a transformação dessa filosofia – inegavelmente magnífica, na sua propositura – em arma político-ideológica a serviço de um novo tipo, o do imperialismo, que se atirou à conquista da
supremacia mundial, impondo a todos a insegurança, o arbítrio, a prepotência, o desconhecimento de quaisquer prerrogativas que não as do pequeno grupo, estas absolutas. Para os pregadores desse credo, as reivindicações dos grupos de trabalhadores e das categorias profissionais e sociais não se constituem em um fim. Elas se convertem num simples, frio e egoístico processo tático, que estiola internamente as nações, em proveito de um só beneficiário. Este logrou infundir em algumas camadas, incluída a dos intelectuais, uma espécie de mística de autodestruição, de masoquismo cívico, de êxtase das multidões nsatisfeitas. Abalou-se, pois, o conceito de solidariedade nacional, como se dentro das fronteiras do país pudessem conviver e prosperar, insuflando-se civis a reivindicações contra militares, funcionários contra empregados, citadinos contra agricultores. Acham-se superados, sem dúvida, os termos do liberalismo ortodoxo. As leis da democracia devem ajustar-se às novas condições vigentes. A liberdade de organização sindical e o direito de greve interessam ao próprio conceito do regime. Sua aplicação, contudo, não objetiva a destruição da ordem social. Tenho por inadmissível a sua utilização dolosa contra a nossa coletividade, sobretudo se a serviço de conveniências externas. Na flâmula do velho socialismo, a legenda de paz entre as nações ocupava lugar de relevo. Era legenda da confraternização geral, que simultaneamente condenava os jacobinismos estreitos e os nacionalismos obtusos, geradores de conflitos, por via do mesmo artifício demagógico, atrás recordado. E, como variante dele, apresenta-se hoje o falso nacionalismo, como a sublime panacéia da época. No século dos teleguiados, dos satélites artificiais, dos aviões supersônicos, do rádio, da televisão, da ONU, surgem, nos países do Ocidente, operadores políticos – nem sempre nascidos nestas terras – intentando despertar e acirrar ódios nos Estados do hemisfério, valendo-se dos enormes tropeços que os respectivos povos defrontam nas veredas do progresso. Esses esforços precisam ser desmascarados, enfrentados e batidos, isto se realmente quisermos atingir o duplo objetivo que sobremaneira nos importa: internamente, promover a ascensão do elemento humano abandonado, o que só será viável mediante um senso profundo de solidariedade geral; e, no plano internacional, proporcionar ao Brasil a posição a que faz jus no concerto das nações. A tarefa é possível mediante uma política soberana, mas soberana no sentido real e amplo diante de todas e quaisquer potências. Ainda recentemente, das Antilhas conturbadas, chega-me o eco das vozes de esperança com que aquela gente, desassombrada e altiva, aguarda o novo governo norte-americano e a inauguração desse próprio governo, na expectativa de outras diretrizes de cooperação para todo o continente. O grau de dissolução a que chegamos derivou, em parte, da crise de autoridade e de austeridade do poder, comprometido o seu prestígio por um rol consternador de escândalos oficiais, incentivados pela mais arrepiante impunidade. Apercebidas de que o arcabouço federal comprometia-se com especuladores empenhados no auto-enriquecimento e na auto-concessão de proveitos e regalias, fora impossível que as camadas menos favorecidas da população deixassem, por sua vez, de reivindicar, sempre e incessantemente, proveitos e regalias. O meu governo, entretanto, representa um paradeiro a isso, definitivo e último. Ele traduz o grito de revolta de seis milhões de eleitores, decididos a pôr o ponto final a esse ciclo de insânias. Todavia, para que a obra de governo tenha êxito, é preciso que aqueles que contribuíram para a vitória dela
participem e a sustentem. É fundamental e imprescindível que se afirmem a solidariedade e a
co-responsabilidade de todos os núcleos sociais. Isto vale para os que detêm o capital e as alavancas da produção, para os que lidam nas cidades e nos campos, para os civis e para os militares. Crescemos todos juntos, de mãos dadas, cada qual suportando as penas necessárias ao êxito comum, ou afundamos todos, sem remissão, afogados no mar da falência global. Não pedirei ao povo que aperte o cinto e sofra calado o enriquecimento abusivo e indecente dos gozadores inescrupulosos. Os proletários e os humildes devem zelar pelos seus interesses e por eles lutar dentro das regras do sistema democrático. Cumpre-lhes, porém, imbuir-se da disciplina do trabalho. Será nosso empenho promover o bem-estar das camadas populares, a começar pelas mais deslembradas, quais as do sofrido Nordeste. Mas o bem-estar nacional resultará de crescimento harmonioso da nossa economia, do seu planejamento, de gestão governamental proba e eficiente, em que todos tenham o seu quinhão, como recompensa da sua firmeza e da sua labuta. Não se arrede da nossa mente que, quando um grupo social recebe vantagens além dos limites de eqüidade, é todo o restante da população que suporta o fardo dessa exorbitância. Atento a esse critério é que se pode decidir da procedência ou improcedência das reivindicações. Precisamos encarar o problema social com olhos que enxerguem, liquidando o engano segundo o qual os cidadãos podem pleitear do Estado, como se este fosse arca sem fundo, na qual a todos é permitido meter as mãos,
sem que os tesouros jamais se esgotem. O Estado somos todos nós. O Estado é, apenas, o construtor e o supervisor da fortuna coletiva. A nossa renda nacional resulta, e só, daquilo que produzimos, consumimos e exportamos. Somente dessa renda podemos participar, somente ela é suscetível de partilha. Se, como cardume de piranhas, precipitarmo-nos sobre ela, cada qual abocanhando o quinhão do seu apetite, nada sobrará para os investimentos indispensáveis ao progresso e, dentro de pouco tempo, seríamos compelidos a implorar à caridade internacional. Nos países cujas instituições foram derrubadas em conseqüência do
êxito de guerras fratricidas, o que vemos não é a instauração do reino dos céus. Ao contrário, daí por diante, ficaram proibidas todas as reivindicações, abolida toda a liberdade, suprimida a crítica. Em lugar de mil patrões a disputar o artífice no mercado da concorrência, um só patrão, prepotente e autoritário, dita salários, as horas de serviço e as cotas de produção. Em lugar da distribuição da terra, a sua estatização. Em face do grande império central, que tudo vê e tudo prevê, nenhuma pequena nação, mesmo afim ou irmã, mantém a licença de falar em nacionalismo. Conservemos, pois, as nossas liberdades, fortalecendo-as e ampliando-as. Vivamos como seres livres, construindo o poderoso Brasil. Tê-la-emos, afinal. Díspares são os destinos, as ambições, as paixões dos homens. A democracia é um regime suficientemente dinâmico para permitir que esse embate de interesses e de situações se processe sem dano maior à paz pública. É um coro de harmonias às vezes desencontradas, mas regidas pelo compasso do bem comum. Ela tem sabido ajustar-se e vicejar, fortalecendo-se, mais e mais, mediante a ação do Estado no campo da iniciativa particular, orientando, empreendendo, complementando, atenta às novas exigências demográficas e sócio-econômicas. O nosso propósito deve ser multiplicar os órgãos da mecânica democrática, fazendo que surjam, ao lado dos tradicionais, outros, mais próximos das massas, que dêem a estas a representação a que fazem jus, com participação efetiva nas responsabilidades governamentais. Pessimismo? Não! Não se extraia desta mensagem uma conclusão pessimista quanto ao porvir de nossa pátria. Nem teria sentido que, ao final de árdua campanha, em que apaixonadamente pedi os vossos votos, viesse dizer-vos que a tarefa para a qual fui eleito é inexeqüível. Creio firmemente, profundamente, no invencível destino do Brasil. Esta é a terra de Canaã, ilimitada e fecunda. Nenhum obstáculo natural trava, aqui, o caminho do progresso, e eu me sinto orgulhoso de ser o seu dirigente. Este é um país de solo fértil e de subsolo inesgotável. Ademais, já superamos o instante em que essas riquezas eram cantadas e permaneciam
estéreis. Nossa agricultura expande-se, nossas indústrias multiplicam-se. Prosperamos, não por via de sortilégios, mas pelo mérito de todos os que tivemos a felicidade de habitar nesta nação. Somos um povo tenaz e tranqüilo, impermeável a preconceitos de raça, de cor, de credo, que realizou o milagre de sua unidade cimentada nos séculos e que começa a erigir uma civilização sem rival nestes paralelos. Não medraram entre nós as sementes divisionistas. Não temos pela frente óbices irremovíveis. Em face dos dramas que traumatizam tantos povos, os nossos problemas apresentam-se simples e fáceis. Podem ser assim resumidos: uma administração criteriosa e honesta; um planejamento realista e firme; um sistema de relações corajoso e franco entre governantes e governados. Como disse o filósofo: “O que faz que os homens formem um povo é a lembrança das grandes coisas que realizaram juntos e a vontade de levar a efeito novas e grandes coisas”. Um país, entretanto, não é uma abstração. Incabível, pois, que, em nome dos habitantes de amanhã, se submeta os de hoje ao despojamento
de seus bens essenciais. Por igual, não nos assiste o direito de comprometer o conforto e a segurança das gerações futuras, dilapidando o patrimônio nacional. Sob o meu governo, não haverá lugar para tais práticas. Atravessamos horas das mais conturbadas que a humanidade já conheceu. O colonialismo agoniza, envergonhado de si mesmo, incapaz de solver os dramas e as contradições que engendrou. Ao Brasil cabe estender as mãos a esse mundo jovem, compreendendo-lhe os excessos ou desvios ocasionais, que decorrem da secular contenção de aspirações enobrecedoras. Compreender significa auxiliar no que for possível e no que for preciso. Fiel à sua origem, às suas tradições, às suas tendências, à sua geografia, a nação não esquece, antes solenemente ratifica, todos os seus compromisso legais e genuínos. Abrimos nossos braços a todos os países do continente. Abrimo-los, também, às velhas coletividades européias e asiáticas, sem prevenções político-filosóficas. Os nossos portos agasalharão todos os que conosco queiram comerciar. Somos uma comunhão sem rancores ou temores. Temos
plena consciência da nossa pujança para que nos arreceemos de tratar com quem quer que seja. Recebi, ainda agora, os cumprimentos do corpo diplomático. Desejo que cada um dos embaixadores acreditados em Brasília transmita a seus governos e aos seus povos os votos de paz e prosperidade do povo e do governo do Brasil. Com a indispensável cooperação do legislativo e do Judiciário, não há cuidados que não dispense, nem há dores que não aceite para exercer, com exação e dignidade, a magistratura de que fui investido. Aos homens e às mulheres que me ouvem e que em mim confiam, outra vez, os meus agradecimentos. Que Deus onipotente me ajude, e nos ajude. Meus compatriotas: viva o Brasil!

Alvaro da Costa Franco, org. DOCUMENTOS DA
Política Externa Independente, FUNAG

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